Por muito tempo, parecia que os Sackler seriam os heróis de uma clássica história americana de sucesso: filhos de um imigrante judeu pobre do Leste Europeu, eles criaram um império empresarial que atravessa gerações.
E é até possível afirmar que este é o enredo do excelente O Império da Dor (tradução de Bruno Casotti e Natalie Gerhardt; Intrínseca; 544 páginas), de Patrick Radden Keefe, jornalista da revista The New Yorker.
O livro, porém, narra uma história não de glória, mas de infâmia.
A Purdue Pharma, empresa farmacêutica controlada pela família Sackler, fez bilhões com o OxyContin, um analgésico poderoso cuja comercialização desenfreada foi uma das causas da epidemia de vício em opioides que matou mais de 450 mil americanos nos últimos 25 anos, segundo dados do CDC (o Centro de Controle e Prevenção de Doenças).
Nesse período, as drogas derivadas do ópio tornaram-se a principal causa de morte acidental nos Estados Unidos, à frente dos acidentes de carro.
Radden Keefe reconstitui a saga da família desde a chegada de Isaac Sackler a Nova York, em 1906, até o processo de falência aberto pela Purdue Pharma em 2019 (uma manobra para preservar a fortuna pessoal dos Sackler e livrá-los de processos judiciais).
É uma história de ganância desenfreada, e de hipocrisia. Até a imprensa escancarar a ligação dos Sackler com a empresa que produzia o medicamento mais vendido do país, o nome da família estava associado à filantropia.
As doações realizadas por diferentes membros do clã garantiram que universidades prestigiosas como Yale e Harvard batizassem prédios e cátedras com o nome Sackler, que também aparecia em placas reluzentes na entrada de galerias e museus como o Metropolitan e o Louvre.
Patriarca da família nos EUA, Isaac Sackler prosperou com mercearias e outros pequenos negócios, mas seu patrimônio se esvaiu depois da quebra da Bolsa em 1929.
O império familiar é obra de seus filhos Arthur (1913-1987), Mortimer (1916-2010) e Raymond (1920-2017), todos eles médicos. No início dos anos 1950, os três compraram, por US$ 50 mil, uma pequena empresa farmacêutica cujo carro-chefe era um laxante: a Purdue Frederick, a origem da Purdue Pharma.
Arthur, o primogênito, fez fortuna com publicidade. No fim da década de 40, comprou a agência onde trabalhava, a McAdams, especializada em anunciar medicamentos diretamente para os médicos. Também era sócio oculto de uma agência concorrente, assim dominando virtualmente todo o mercado.
No final dos anos 50, a McAdams fez a bem-sucedida campanha de lançamento dos calmantes Librium e o Valium, da Roche. O contrato da agência com o laboratório previa uma série de bônus sobre as vendas. Arthur ganhou muito quando o Valium se tornou o primeiro medicamento a faturar mais de US$ 100 milhões.
A Roche, relata Radden Keefe, ocultou evidências de que seus calmantes poderiam causar dependência – quase uma antecipação dos problemas mais graves que cercariam o OxyContin.
Quando Arthur morreu, em 1987, aos 73 anos, seus herdeiros demonstraram mais interesse em brigar entre si do que em manter a Purdue, que acabou vendida aos irmãos de Arthur e seus filhos pela bagatela de US$ 22 milhões.
Naquele mesmo ano, a Purdue lançara nos Estados Unidos o MS Contin, um medicamento revolucionário no tratamento da dor.
O princípio ativo – a morfina – já era empregado como analgésico há tempos. A novidade era o invólucro do comprimido, que permitia a liberação gradual, dispensando o uso da agulha intravenosa. O medicamento tinha emprego sobretudo oncológico, aliviando a dor de pacientes terminais.
A estratégia de marketing do OxyContin, lançado em 1996, foi mais agressiva. Vendeu-se a droga – a base de oxicodona, um opióide mais potente que a morfina – como um tratamento continuado e seguro para dores crônicas. A empresa alegava que apenas 1% dos pacientes se viciavam na droga, mas o número era uma fantasia: nunca se realizaram pesquisas sobre dependência.
Muitos usuários começavam a tomar o OxyContin e daí migravam para a heroína e o fentanil, vendidos ilegalmente nas ruas. Houve também numerosos casos de médicos e clínicas que montavam “fábricas de receitas” para alimentar o tráfico ilegal do remédio. A Purdue tinha conhecimento dessas práticas.
Os Sackler e seus executivos continuaram incentivando a venda agressiva da droga mesmo quando as evidências de que ela causava dependência eram inegáveis. Tal indiferença com o sofrimento parece ainda mais monstruosa quando se considera que havia um caso trágico de drogadição na família. Usuário de PCP e heroína, Robert Sackler, filho de Mortimer, jogou-se de uma janela do apartamento de sua mãe, em Nova York, em 1975. A família raramente mencionava seu nome.
Radden Keefe identifica na Purdue Pharma problemas que podem afligir uma empresa familiar de capital fechado. Sem ações na Bolsa cujo valor poderia cair com a cobertura negativa da imprensa, a Purdue jamais se sentiu compelida a revisar suas estratégias criminosas. E muitos dos filhos de Mortimer e Raymond – a terceira geração da família – viam a empresa apenas como um meio de financiar seus estilos de vida extravagantes.
Detalhado, bem documentado e composto com um ritmo narrativo impecável, Império da Dor é uma autópsia do poder econômico sem freios. Muitos procuradores estaduais tentaram responsabilizar os proprietários da Purdue pelos malfeitos da empresa, sem sucesso: os Sackler tinham uma vasta rede de amparo político e contavam com os melhores advogados.
Nunca foram formalmente acusados por nenhum crime. As punições foram apenas simbólicas: alguns museus e universidades removeram o nome Sackler de seus prédios.