Uma das brigas societárias mais quentes do mundo da advocacia teve mais um capítulo na semana passada, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu a forma como o Cescon Barrieu deve indenizar seu sócio fundador Luis Antonio de Souza, que deixou a sociedade em novembro de 2017.
O Cescon Barrieu queria pagar a parte de Souza com base apenas no balanço patrimonial do escritório, que não reflete o fluxo de caixa de uma das maiores marcas do direito societário no Brasil, uma firma com mais de 300 advogados, mais de 60 sócios e, na época, clientes como Eletrobras, Grupo Pão de Açúcar, Bunge e GIC, o fundo soberano de Singapura.
Alegando que o escritório tinha contratos milionários — e que ele trouxera muitos deles — Souza discordou da forma da indenização, levando o Cescon Barrieu a entrar na Justiça com uma “ação de apuração de haveres” para determinar o que era devido.
No centro da disputa, uma pergunta com consequências financeiras materiais para os escritórios de advocacia: são eles ‘sociedades simples’, como tem sido o entendimento até hoje, ou ‘sociedades empresárias’?
Junto com Maria Cristina Cescon e outros dois sócios, Souza fundou o então Souza Cescon em 2001. Foi ele quem alugou o imóvel que seria a sede do escritório, deu garantias pessoais e colocou seu nome na placa.
A tese de Souza, defendida nos autos: uma vez que um advogado coloca de pé uma nova firma, aportando nela todo seu conhecimento e contatos, esses ativos deixam de pertencer ao indivíduo e se institucionalizam. A firma ganha vida própria — daí seu caráter empresarial e o direito reclamado por Souza, como sócio retirante, de ter sua parte no equity avaliada por meio de um fluxo de caixa descontado e levando em conta os bens intangíveis da firma.
A tese do Cescon Barrieu, defendida nos autos: o contrato social da firma estabelece como referência o balanço patrimonial — essencialmente, o valor dos móveis do escritório — e isso é tudo a que o sócio retirante tem direito.
Souza perdeu na primeira instância e apelou ao TJSP.
No voto da semana passada, o tribunal disse que o advogado tem direito a mais do que apenas o balanço patrimonial — mas não abraçou a tese central de Souza de que um escritório é uma empresa, e como tal tem goodwill e fundo de comércio.
O tribunal decidiu que a indenização precisará levar em conta honorários por serviços já prestados e ainda não pagos, bem como todos os contratos vigentes à época da saída do sócio. Mais: o Cescon Barrieu não poderá incluir na conta provisões e reservas de contingência que diminuiriam o valor do equity (segundo os desembargadores, estas só poderiam entrar na conta no caso de liquidação do escritório).
Ambas as partes ainda podem recorrer ao STJ.
A decisão foi comemorada pelo Cescon Barrieu e outros grandes escritórios porque tem implicações patrimoniais bilionárias: hoje, os escritórios se apresentam ao Fisco como “sociedades uniprofissionais” — que, pela lei, não podem ter caráter comercial ou empresarial — o que lhes garante recolher um ISS simbólico.
Assim, enquanto grandes bancos e empresas industriais pagam ISS sobre o total de seu faturamento, os advogados do Brasil pagam uma alíquota fixa de ISS de R$ 300/500 por sócio a cada trimestre (em vez de um percentual do faturamento).
Se a Justiça eventualmente entender que os escritórios são empresas, isso poria fim a uma das maiores meia-entradas do mundo corporativo, dando aos municípios base para cobrar o ‘ISS full’ num mercado em que algumas firmas faturam mais de R$ 1 bi por ano e têm até CEO. Além disso, os escritórios passariam a ter que manter recursos em caixa para recomprar as participações dos sócios que saem.
Para alegar que não são empresas, os escritórios apontam para o artigo 16 do Estatuto dos Advogados — uma lei federal — que diz que “não são admitidas a registro, nem podem funcionar, as sociedades de advogados que apresentem forma ou características mercantis.” Este artigo fornece a base jurídica para o argumento de que os escritórios são apenas reuniões de profissionais atuando independentemente — como se a mera proibição contida na lei fosse capaz de se sobrepor à realidade econômica das firmas.
A decisão foi tomada pela Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, formada pelos desembargadores Fortes Barbosa (como relator), Pereira Calças e Cesar Ciampolini.
Alguns comentários dos desembargadores, no entanto, deixaram a porta aberta para uma evolução da jurisprudência.
Na sessão de julgamento, Ciampolini disse que tentou encontrar precedentes na biblioteca do Pinheiro Neto, envolvendo o histórico pedido de dissolução de 1972, quando Ernani Machado e mais quatro advogados saíram do Pinheiro para fundar o Machado Meyer.
O desembargador disse que a matéria estava desatualizada no País, e que até a Itália modificou sua legislação em 2017 para aproximar seu sistema ao dos países anglo-saxões, permitindo a formação das sociedades na forma escolhida pelos sócios.
Segundo advogados que assistiram a sessão, depois de dar seu voto Ciampolini pediu a “manifestação” do desembargador Eduardo Nishi, que não era um dos julgadores mas com quem havia discutido profundamente o assunto. (Tanto Ciampolini quanto Nishi foram advogados antes de se tornarem desembargadores).
Nishi disse duvidar que um advogado sozinho fosse capaz de faturar centenas de milhões. Para ele, a escala dos escritórios pressupõe “uma estrutura de empresa” e uma relação do cliente com a firma — e não com um profissional específico.
Se isso é verdade, argumentou Nishi, não há como negar que há um intangível associado à atuação dos escritórios e, como tal, os sócios remanescentes estão tendo um ganho indevido às custas do sócio retirante — exatamente a tese de Souza.
“Com toda a elegância, ele divergiu dos outros desembargadores, notou que alguns escritórios chegam a ter ações na bolsa e que as sociedades de hoje são diferentes das sociedades antigas,” uma advogada que acompanhou a sessão relatou ao Brazil Journal.
Ciampolini disse que os argumentos faziam sentido, mas que não estava preparado para dar este passo. Para ele, a reforma da jurisprudência ficará de ‘lege ferenda’ (dependerá de uma nova lei) ou nas mãos de juízes mais jovens, como Nishi.
Souza perdeu a tese central por 3 a zero, mas a ironia da cena não passou despercebida aos presentes: escritórios não são empresas, mas o assunto acabara de ser julgado numa Câmara Empresarial.