Dois anos atrás, o advogado Marcelo Trindade tirou um sabático do direito societário e de mercado de capitais para botar o pé na política, tentando se eleger governador do Rio de Janeiro pelo Novo.
 
10501 83f66753 1932 0000 0003 e9aafa002e1fInfelizmente, a população fluminense preferiu insistir em sua fórmula consagrada — eleger apenas candidatos do Partido da Vergonha Alheia (PVA) ou do Partido do Arrependimento Tardio (PAT) — e Trindade ficou em oitavo lugar, com 1,14% dos votos.
 
Agora, os bastidores daquela candidatura e a cabeça do candidato durante aquela jornada estão disponíveis a todos nós em “O Caminho do Centro: memórias de uma aventura eleitoral” (288 páginas), livro que acaba de sair pelo História Real, o novo selo de não-ficção criado pelo editor Roberto Feith na Intrínseca.
 
“Caminho do Centro” é um relato franco de um novato na política, abordando erros e acertos, frustrações e alegrias, com muita candura e pouca frescura. 
 
É o segundo livro do História Real, que pretende publicar exclusivamente autores brasileiros. O primeiro, “Liberdade Igual, o que é e porque importa,” do constitucionalista Gustavo Binenbojm, saiu em agosto, e até o final do ano o selo publicará Luis Roberto Barroso, o ministro do Supremo, articulando sua visão sobre os principais problemas brasileiros, e Eduardo Mufarej, contando a história da criação do Renova.
 
Abaixo, dois trechos de “Caminho do Centro” selecionados pelo Brazil Journal.


     Outro ataque que recebi da mídia B dos adversários veio logo no começo da campanha. Fazia referência ao fato de eu ter sido nomeado presidente da CVM no governo Lula, e por Antonio Palocci, que fora preso. Esse era um questionamento previsível e até legítimo que também apareceu na grande imprensa. O Globo levantou o tema na entrevista publicada em 21 de setembro. Perguntaram como ter presidido a CVM no governo Lula, indicado por Palocci, poderia combinar com o discurso do Novo. Minha resposta era sempre a mesma quando o assunto surgia. Eu não conhecia Palocci quando fui convidado e entrevistado por seus assessores e, depois, por ele. Tinha sido diretor da Comissão no governo de Fernando Henrique Cardoso e era um técnico numa posição técnica.

     Na resposta a O Globo, disse também que não via contradição, porque o Novo propunha um estado que se concentrasse nas suas verdadeiras missões – educação, saúde e segurança – e que concedesse as demais atividades à iniciativa privada, para que esta atuasse sob supervisão estatal. Para isso, continuei, era preciso regulação adequada. Nosso programa defendia a reorganização das agências supervisoras dos serviços públicos concedidos à iniciativa privada. Estas, como a CVM, deveriam ter cinco diretores com mandatos alternados. Cada ano só um diretor deveria ser substituído. Desse jeito, eu dizia, a cultura da casa prevaleceria sobre a dos governos.

     A qualidade e a independência da equipe que Palocci nomeou, toda profissional e sem vínculos com o PT, foi uma das razões pelas quais aceitara o convite para presidir a Comissão. A outra foi a garantia que o ministro me deu, e cumpriu, de que a independência da CVM seria respeitada e sua arrecadação de taxas destinada integralmente ao custeio de suas atividades. O time que Palocci reunira era admirável. A diretoria do Banco Central, com Afonso Beviláqua, Alexandre Schwartsman, Beny Parnes e Eduardo Loio, além de experientes funcionários de carreira do banco, era presidida por Henrique Meirelles – que havia sido eleito deputado federal pelo PSDB quando aceitou o convite. A Secretaria de Política Econômica cabia a Marcos Lisboa, e a Secretaria do Tesouro Nacional, a Joaquim Levy.

     O único dos técnicos da equipe de Palocci de quem eu não tinha referências prévias era Bernard Appy, secretário executivo do ministério, uma espécie de vice-ministro. Encontrei em Appy, com quem interagia por causa de questões orçamentárias e institucionais da Comissão, um técnico que encaminhava as discussões e tomava suas decisões de maneira explicitamente fundamentada. Passei a admirá-lo intensamente. Ele se tornou um dos maiores especialistas na questão tributária brasileira, e publicamos juntos, muitos anos depois, um artigo em O Estado de S. Paulo sobre o financiamento das agências reguladoras.

    Eu tinha visto Pedro Malan trabalhar como ministro da Fazenda, com sua inigualável capacidade de encontrar a convergência onde ela fosse possível e rapidamente determinar o rumo a seguir. Tinha visto Armínio Fraga conduzir o Banco Central com uma notável capacidade de superar resistências às medidas corretas, sendo firme, mas sem se indispor com os oponentes, cientes de que ele agia motivado pelo interesse público. Tinha presenciado Amaury Bier exercer com firmeza e profissionalismo as funções que agora eram de Bernard Appy. Ainda assim, confesso que fiquei impressionado com o desempenho de Palocci e sua equipe nos quase dois anos em que testemunhei seu trabalho à frente do ministério. Tomei posse em maio de 2004, e ele saiu em março de 2006, em consequência das denúncias de um caseiro em Brasília, Francenildo Costa, que disse ter visto o ministro frequentar uma casa alugada por ex-assessores quando fora prefeito de Ribeirão Preto, na qual teriam sido realizadas festas e reuniões para tratar de atos ilícitos.

    Embora não tivesse formação econômica ou jurídica, Palocci inteirava-se rapidamente de todos os temas discutidos nas reuniões do Conselho Monetário Nacional, que ele presidia, e das quais eu participava como presidente da CVM. Era capaz de tomar conhecimento de um assunto pela primeira vez durante a reunião e, ainda assim, fazer as perguntas corretas. Em seguida, na entrevista coletiva à imprensa, ele explicava com precisão a decisão técnica tomada antes de passar a palavra ao responsável pelo assunto para detalhar – o que me cabia quando o tema provinha da Comissão.

    O sucessor de Palocci, Guido Mantega, responsável pelo ministério até que eu deixasse a CVM, cerca de um ano depois, era exatamente o oposto, embora fosse economista. Tinha preconceitos em relação ao mercado de capitais que diminuíam sua capacidade de participar mais profundamente das discussões e o impediam, muitas vezes, de tomar a decisão adequada.

     A CVM fica sediada no Rio de Janeiro, tem um escritório de porte em São Paulo e apenas um pequeno escritório de representação institucional em Brasília. Eu dizia que essa era uma das razões pelas quais nunca se vira o nome da Comissão envolvido em acusações de má conduta, em nenhum governo. A distância do poder trazia um duplo benefício: os dirigentes da CVM não se preocupavam com os políticos, e os políticos não se lembravam da existência dela.Mas é claro que tudo isso era informação demais para responder à acusação de ser um petista disfarçado. Eu me limitava a dizer que havia trabalhado em um governo do PSDB e em um do PT, como muitos outros quadros técnicos, e que isso não me desqualificava como representante liberal.

 
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     No debate da UFRJ, quando terminei minhas considerações iniciais para aqueles milhares de estudantes majoritariamente de esquerda, os militantes do PT, que ali eram minoria em relação aos do PSOL, puxaram uma musiquinha em coro: “Eu vou contar pra tu, o Novo é o partido do Itaú.” Enquanto Tiburi e boa parte do público riam, eu me sentei espumando de raiva. Minha maior dificuldade sempre foi conseguir me controlar para não ser agressivo demais em debates e discussões. Atacar o adversário de uma maneira desproporcional, em qualquer debate, é meio caminho andado para a derrota. Quem julga, observa ou vota tende a tomar as dores do agredido e a considerar o opressor arrogante ou covarde – ou ambos. Enquanto outros candidatos faziam suas apresentações iniciais de três minutos, pensei em uma versão da musiquinha para cantar tão logo tivesse a palavra novamente: “Eu vou contar pro’cê, a Odebrecht tem saudades do PT/ Eu vou contar pro’cê, a OAS também chora sem te ver.” Décadas de arquibancada, pensei, garantirão o ritmo certo e é capaz de pegar.

    Eu estava repetindo mentalmente a letra e a melodia, quando Marcia Tiburi foi designada para fazer a primeira pergunta entre candidatos. Ela, é claro, animada pelo corinho de sua claque, me escolheu para responder. Explicou que a pergunta era para mim porque queria saber a opinião de um neoliberal. Era o meu momento de ir à forra. A plateia, de maioria psolista, adoraria meu cântico sobre o PT e as empreiteiras. A batalha entre Ciro Gomes e Fernando Haddad para definir quem seria o adversário de Bolsonaro no segundo turno estava quente e a esquerda, dividida, com o PSOL apoiando Ciro. 

     Ao invés de cantar minha versão, comecei respondendo que havia um mal-entendido. Eu não era neoliberal, era liberal para valer. “E ser liberal”, prossegui antes de responder à pergunta “significava escutar as mensagens dos adversários ao invés de rir quando as outras pessoas expõem suas ideias ou, pior ainda, cantar musiquinhas que as desqualifiquem a priori.” Fui interrompido pelas palmas do auditório, y compris a maioria psolista, que não perdeu a oportunidade de dar o toco nos petistas. Ainda pensei em puxar o coro com a musiquinha, mas me dei conta de que estaria contrariando o meu discurso. Quando as palmas pararam, segui em frente. O tempo era curto e precisava responder à pergunta. Tratei de expor nossa visão sobre a calamidade no ensino médio no Rio de Janeiro, principal responsabilidade do estado na divisão de competências com a União. Fui bem menos aplaudido quando terminei essa parte.

    Os aplausos do auditório à minha crítica aos militantes do PT fizeram com que não voltassem a me atacar naquela manhã. Mesmo assim, não resisti a uma pequena revanche na minha última manifestação. Falando depois de Tiburi, incluí, entre as razões para aqueles jovens considerarem votar no Novo, o fato de que não deveriam votar em quem, dizendo ser de esquerda, como o PT, aliara-se aos empresários brasileiros num gigantesco esquema de corrupção. A plateia se dividiu e eu emendei: “O PT, cujos líderes e boa parte da militância estão apoiando não você, Marcia”, disse, olhando para ela, que estava ao meu lado, “mas Eduardo Paes, do MDB, a quem o PT deu suporte ao longo dos anos de prefeitura do Rio de Janeiro, inclusive indicando o vice-prefeito.” Marcia pediu direito de resposta, que lhe foi negado – o dito vice-prefeito fora fotografado em campanha com Eduardo Paes poucos dias antes.

     Na saída da UFRJ, antes de tomar o rumo da Região dos Lagos, no norte do estado, onde passaria dois dias, encontrei no banheiro o Chico Alencar, candidato a senador pelo PSOL, que estivera na plateia. Mais um de quem, no mérito das opiniões, eu discordava em praticamente tudo, mas admirava por ter deixado o PT ao perceber como as coisas estavam sendo conduzidas. Ele puxou o assunto: “Fico feliz que exista uma candidatura liberal sensata, para que o debate seja travado no campo das ideias e não do ódio.” Sempre me lembro do exemplo de Chico Alencar e Tarcísio Motta quando vejo o discurso do ódio utilizado por outros parlamentares do PSOL, ou por militantes e parlamentares do próprio Partido Novo.

     A verdade é que é muito difícil para os partidos manter unidade e coerência, e não se deve pretender transformá-los em seitas, que não admitem divergências. Aí está a importância das atividades e dos debates partidários. Toda discussão estimula a tolerância e contribui para que possamos nos conformar com o fato de que teremos discordâncias até com os que são filiados ao mesmo partido, com os quais deveríamos nos identificar mais. A unidade permanente e completa é irrealizável. Ao final, caberá às lideranças partidárias assumir a missão de tornar públicas as visões adotadas pelo partido, e àqueles que se oponham radicalmente se retirarem.