Vender a coisa pública nunca é um processo fácil.

Com a tradição de roubalheira no Brasil, toda vez que o Estado faz um negócio, convém que haja fiscalização dos órgãos competentes e escrutínio por parte da sociedade.

Dito isto, o TCU – um dos órgãos a quem cabe fiscalizar – virou uma espécie de Quinto Poder da República, com ingerência cada vez maior sobre todo e qualquer processo de venda de ativos e, em alguns casos, criando regras que atrapalham o interesse público.

Vejamos o que aconteceu na oferta de ações da Eletrobras, precificada quinta-feira à noite.

Num processo de bookbuilding normal, tanto a empresa quanto os bancos coordenadores fazem um tradeoff entre o preço e a qualidade dos investidores.  Ou seja, muitas vezes uma empresa concorda em precificar seu papel um pouco abaixo do que poderia – se isso for necessário para atrair para a base acionária investidores com experiência no setor e capacidade de contribuir para a própria empresa.

Mas devido à dinâmica de venda criada pelo TCU, a Eletrobras não teve essa oportunidade.

Além – obviamente – de um dia pavoroso para as bolsas em todo o mundo, essas distorções no processo de precificação da Eletrobras foram responsáveis pelo fraco desempenho do papel no dia seguinte ao pricing.

Gestores que participaram do processo dizem que houve dois problemas fundamentais: as regras do TCU só permitiam que o BNDES fizesse a venda acima de um determinado preço mínimo, conhecido apenas pelo Governo e pelo próprio TCU. Se o book ficasse sequer um centavo abaixo do preço, a transação seria automaticamente cancelada – sem choro nem vela.

A fixação deste preço na vírgula – em vez de uma faixa – enrijeceu o processo e privou o BNDES da flexibilidade necessária para fazer concessões de preço em troca de qualidade. (Qualquer banqueiro de cabelo branco sabe que precificar uma oferta é tanto arte quanto ciência.)

Ao longo do processo de aprovação da oferta, o TCU foi forçando o preço mínimo para cima, sempre alegando que algum item não estava sendo contemplado, ainda que com argumentos técnicos frágeis.

Esse jeito “cartorial” de lidar com dinâmicas de mercado se refletiu também nos incentivos aos bancos: a União tinha R$ 30 bilhões em jogo, mas não deu aos bancos coordenadores os incentivos típicos de processo de IPOs – em que os bancos são incentivados a trabalhar a qualidade do book para que a ação negocie bem no dia seguinte.

“Na Eletrobras não houve o fee discricionário (que o emissor paga aos bancos que fazem o melhor trabalho),” disse um gestor. “A comissão dos bancos era flat, naquela lógica do Governo de pagar o menor preço possível. Se o deal saísse, os bancos ganhavam. Se não saísse, não.”

Ao buscar maximizar o preço, o processo conduzido pelo BNDES deixou de fora investidores internacionais com ampla expertise em infraestrutura, como o GIC e o CPPIB. Outra ausência notada: a Itaúsa, que em vários momentos foi apontada como presença certa no book.

Na reta final, os coordenadores colocaram contra a parede tanto grandes fundos globais quanto alguns dos maiores gestores brasileiros – que haviam colocado ofertas bilionárias a vários níveis de preço entre R$ 38,50 e R$ 40.

Instados a subir a ordem para R$ 42, esses investidores pularam fora, e, de uma hora para outra, a alocação passou a depender de hedge funds e pessoas físicas. (Só as ordens do GIC, o fundo soberano de Singapura, passavam de R$ 4 bilhões.)

“Agora, quem vai sentar lá agora e compor o conselho da Eletrobras com o Banco Clássico e a 3G Radar?” pergunta um gestor, retoricamente.  “A composição do conselho é que é a privatização de verdade.”

Para o Governo conseguir cumprir os prazos, a composição do livro de ordens começou informalmente em meados de abril, quando a aprovação da transação ainda tramitava no TCU. Na época, a maior parte das ordens dos âncoras estava ao redor de R$ 37.

Mas o processo se alongou, e um mês depois os bancos pediram aos investidores para atualizar suas ordens levando em consideração o fato do preço da ação ter subido. A maioria cedeu, e a faixa de ancoragem subiu para R$ 38,50-39.

Mas ontem, nas horas finais, os bancos estavam confiantes e  disseram ao mercado que o deal ia fechar em R$ 42-42,50 – take it or leave it.  Diversos grandes fundos saíram da mesa, enquanto outros cortaram o tamanho de suas ordens.

A ancoragem subitamente despencou de R$ 13 bilhões para R$ 4,5 bilhões – obrigando os bancos a desovar (esta é a palavra) mais R$ 8,5 bi de papel junto a hedge funds e gestoras não-âncoras.

Mas o pior estava por vir: temendo ficar de fora, esses investidores em grande medida haviam inflado suas ordens, apostando que o rateio seria grande.

“Teve gestora de R$ 500 milhões [de ativos sob gestão] que queria R$ 100 milhões e pediu várias vezes esse número.” Na última hora, uns pediram pelo amor de Deus para não ser alocados, outros levaram muito mais do que pediram.

No pregão de ontem, esses investidores tiveram que vender outros papéis para fazer caixa e pagar a liquidação na terça-feira – pressionando outras ações do setor de energia – ou alugar e vender Eletrobras para chegar na terça-feira com a alocação que pretendiam.

Em Nova York, onde o investidor em ADR já conseguia vender o papel ontem, o papel da Eletrobras caía 3,5% no pre-market, mesmo antes da publicação do número da inflação americana que derrubou todo o mercado na sexta-feira.

Eletrobras ON fechou o dia a R$ 41, queda de 4,7%, em meio a um mercado pavoroso.

“Uma base de acionistas que poderia ter sido muito bem construída não foi.  Isso poderia ter ajudado muito a companhia.  O preço daqui a uma semana converge…  Entra comprador novo. Mas a oportunidade da empresa já começar com um board de primeira linha foi perdida. Isso vai ter que ser composto lá na frente.”