Uma mudança aparentemente corriqueira no expediente da Vogue pode preparar o terreno para uma das sucessões mais aguardadas do mundo da moda.
Edward Enninful, o celebrado editor-chefe da Vogue britânica, deixou seu cargo na semana passada para trabalhar ao lado de Anna Wintour, que está há 36 anos no pináculo da imprensa da moda: o comando da Vogue americana.
A mudança havia sido anunciada em junho passado, e a edição de despedida de Edward da British Vogue acaba de chegar às bancas.
Quando assumiu o comando da revista, lá se vão seis anos e meio, a Vogue do Reino Unido só falava para as moças esnobes da aristocracia inglesa e suas wannabes.
Edward mudou tudo.
Numa manobra de risco comercial considerável, ele estampou na capa mulheres até então improváveis e celebridades de todas as idades e cores.
“Desde o primeiro dia eu quis abordar a questão da diversidade,” Edward disse numa entrevista. “Em todas as revistas em que trabalhei, quando diziam que mulheres negras não vendem, eu coloquei mulheres negras. Quando diziam que mulheres de uma certa idade não deveriam ser capa… eu pus a Judi Dench na capa da Vogue britânica. Coloquei mulheres com hijabs na capa. Sem tomar risco, o trabalho que eu faço não vale a pena. Você não consegue avançar sem tomar risco.”
Desmentindo o chavão ‘go woke, go broke’, a revista conquistou novos leitores, voltou a repercutir em Londres e ampliou sua base de anunciantes. O preço de cada página de publicidade aumentou a ponto de tornar a British Vogue mais cara que a Vogue americana.
Este turnaround editorial espetacular foi feito por um homem negro, gay, de trato fácil, amigo de inúmeras modelos – e dono de uma trajetória profissional tão espetacular quanto improvável.
Hoje com 52 anos, Edward Kobina Enninful nasceu em Gana e emigrou para Londres com a família quando tinha 13 anos. (O pai, militar, deixou o país após um golpe de estado.)
A imprensa de moda não foi seu primeiro chamado.
Quando ele tinha 16 anos, um olheiro o descobriu no metrô e Edward se tornou modelo. Depois trabalhou anos como um requisitado produtor de moda. Fez, por exemplo, a histórica campanha da Calvin Klein estrelada por Kate Moss – que ele havia conhecido em baladinhas de Londres quando ela tinha apenas 14 anos.
Ao mesmo tempo em que enfrentou uma carga pesada de preconceito – um assunto que ele trata abertamente e sem coitadismo nas entrevistas – Edward conquistou o respeito e a amizade de uma constelação de modelos e celebridades.
Falando certa vez a Maureen Dowd, do New York Times, Edward disse que, tendo nascido negro, pobre e em outro país, tinha tudo para ser invisível – “mas fiz questão de ser visto.”
Em 2006, ele foi para Nova York trabalhar na Vogue americana e acabou virando um protégé de Anna Wintour – a icônica editora-chefe no comando da Vogue desde 1988 e imortalizada por Meryl Streep em O Diabo Veste Prada.
Com Anna, a criatividade de Edward passou por um choque de pragmatismo. Ele disse que aprendeu com ela que “moda é um negócio, e sempre que você coloca algo na página, precisa pensar no que as mulheres querem de fato vestir.”
Edward assumiu a Vogue britânica em 2017, depois de seis anos como editor da W, também do grupo Condé Nast.
Quando lhe perguntaram do que tratava sua autobiografia, A Visible Man, publicada em 2022, ele fuzilou: “Um garoto de Gana abrindo caminho em uma indústria racista e classista.”
Em seu livro de memórias, Edward escreveu que a Vogue britânica estava falando apenas para uma elite.
“A revista parecia estar se distanciando do coração do país – não dizia nada sobre o mundo,” disse ele. “Não refletia o Reino Unido que eu conhecia e do qual eu fazia parte.”
Après Edward, a diversidade na Vogue parece ter vindo para ficar.
Sua sucessora será Chioma Nnadi, uma descendente de nigerianos e suíços alemães — e a primeira mulher negra a editar a revista.
Chioma nasceu em Londres e fez carreira na cidade antes de se mudar para Nova York. Ela está na Vogue americana desde 2010, e até recentemente era a editora do site da revista.
A British Vogue é um colosso com 8 milhões de leitores entre as edições impressa e digital – ainda assim bem menor que os 25 milhões da americana.
A receita de arejar a revista com pautas e rostos heterogêneos – sem abandonar a sofisticação – comprovou o talento de Edward para captar o zeitgeist, e o produto final encantou os anunciantes.
Segundo a consultoria Launchmetrics, a British Vogue aparece no no topo das revistas de moda e beleza na métrica “percentual de publicidade em relação ao conteúdo editorial.”
Falar que Edward tem a moda no sangue talvez não seja exagero. Sua mãe era costureira, e o menino a acompanhava, admirado, no ofício de coser vestidos em Tema, uma cidade no litoral de Gana. (O garoto também lia avidamente revistas importadas no salão de beleza da tia.)
O olhar trazido por Edward ajudou a reposicionar a British Vogue como uma bússola cultural, o que a marca tentou ser desde o início.
A Vogue nasceu em Nova York em 1892 como um semanário que fazia a crônica das festas, eventos e atividades de lazer da classe alta americana.
Comprada pelo publisher nova-iorquino Condé Nast em 1909, a publicação passou a ser uma revista feminina e referência no mundo da moda – sempre tendo como alvo o topo da pirâmide. Na década de 1910 surgiram as primeiras versões internacionais, como a britânica.
Mas foi sob a liderança de Anna Wintour, a partir do final dos anos 80, que a Vogue se consolidou como uma instituição.
Agora parece inevitável que o futuro da revista tenha uma influência crescente de Edward. (Os atuais editores-chefes da Vogue francesa, italiana e espanhola – todos jovens – também são suas crias.)
Na semana passada, chegou às bancas a última edição da British Vogue da era edwardiana. A capa é um atestado do seu prestígio: 40 estrelas que estiveram em capas anteriores da revista abriram espaço na agenda para participar, juntas, da sessão de fotos em Nova York. (Montagem, you know, é para os fracos.)
No melhor estilo ‘We Are the World’, apertaram-se para caber no retrato nomes como Naomi Campbell, Miley Cyrus, Serena Williams, Victoria Beckham, Jane Fonda, Linda Evangelista, Dua Lipa e Oprah.
O clique ficou a cargo do mítico Steven Meisel, autor das fotos do livro Sex, de Madonna, entre tantos trabalhos históricos na moda. (O fotógrafo é o predileto de Edward.)
O congestionamento de estrelas foi semelhante em fevereiro de 2022, quando Edward fez 50 anos e celebrou seu casamento com o cineasta inglês Alex Maxwell, seu significant other de muitos anos.
Mais do que apenas talento, a aclamação do trabalho de Edward é fruto de sua persistência, desafiando o ceticismo até mesmo de seu círculo íntimo.
Quando ele aceitou o convite para comandar a Vogue inglesa, a irmã e os amigos lhe disseram que “não havia nada naquela revista para eles.”
Agora trabalhando ao lado de Anna em Nova York, seu cargo oficial é “consultor criativo e cultural global da Vogue.”
Mas para a imprensa especializada, o cargo é outro: herdeiro aparente.