Na semana passada, o Congresso brasileiro votou uma peça de ficção e decidiu chamá-la de Orçamento.

Despesas OBRIGATÓRIAS foram ignoradas — como se fingir que elas não existem as fizesse desaparecer magicamente — para abrir uma “folga” de R$ 27 bilhões para emendas parlamentares.

Deputados e senadores fizeram cortes no abono salarial, no seguro-desemprego e na Previdência — que compõem a rede de proteção dos mais pobres — em troca de estradas, pontes e ginásios que eles pretendem inaugurar, claro, com aquela foto esperta para usar na próxima campanha.

11384 2f393b96 a253 31ba 6ae2 cec6bcb3f7f5O relator da peça, Senador Márcio Bittar, disse que fez a manobra para evitar que os ministros do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, tivessem que escolher quais obras continuar e quais parar, o que traria prejuízos para o Brasil. 

Seguindo este modo de pensar, a classe média deveria deixar de pagar a conta de luz para conseguir pagar a prestação do carro.  O chato, no Método Bittar, é que quando o brasileiro não paga a conta de luz ele acaba no Serasa — sem crédito e com multa e juros de mora, exatamente o que vai acontecer com o País.

O negacionismo fiscal do Congresso foi uma chicana tão ou mais grave do que as pedaladas que serviram de base jurídica para o impeachment de Dilma Rousseff. Naquela ocasião, o erro de Dilma foi não cortar despesas para que o orçamento de 2014 ficasse compatível com a meta fiscal e autorizar despesas com subsídios via bancos públicos, que seriam pagas apenas em anos posteriores, tornando esses bancos credores do seu controlador, a União, uma prática que é vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. 

Mas o que aconteceu semana passada talvez seja pior. Há princípios básicos na elaboração da Lei do Orçamento que vêm da década de 60, contidos na Lei 4.320. O Art. 6 dessa lei estabelece que:  “Todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções.”  É de uma simplicidade que até uma criança entende.

Ainda assim, o orçamento votado na última quinta-feira passou à margem desse comando, já que parte das despesas obrigatórias foram artificialmente reduzidas para atender a demanda de políticos e ministros por maiores despesas. 

Diversos comandos da Lei de Responsabilidade Fiscal foram violados pela estratégia de subestimar as despesas obrigatórias. Como o governo federal poderá pagar despesas obrigatórias que não estão autorizadas? Como atestar junto aos órgãos de controle que o Orçamento aprovado cumpre com o Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95/2016) se as despesas obrigatórias estão inferiores aos valores publicados pelo Ministério da Economia, que informa esses valores ao Congresso e ao TCU? 

Se não for corrigida, a manobra pode constituir crime de responsabilidade de vários atores políticos e ter repercussões legais para ocupantes do primeiro ao terceiro escalão do governo quando o TCU analisar as contas de 2021 do Poder Executivo. Muitas vezes, o julgamento dessas ações acontece anos depois, ficando como uma espada de Dâmocles sobre o CPF dos técnicos do Governo. 

11213 1cfd225b 5f04 29ce 244d c3536e4fe5eaJá as implicações financeiras serão mais imediatas — e muito graves. Qual será a posição das agências de classificação de risco e dos organismos internacionais quando se debruçarem sobre o orçamento aprovado e questionarem a veracidade dos números do Governo do Brasil? 

É improvável que Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira queiram colocar em suas biografias mais um downgrade no risco do Brasil.  Se antes o downgrade já era uma possibilidade, agora com esse tipo de prática se torna inevitável. 

O nível de tensão no Ministério da Economia e no Banco Central não deve ser subestimado.  No fim de semana, tanto Pacheco quanto Lyra já ficaram cientes de que o bode precisará ser retirado da sala.

Junto com a liberdade de expressão e o direito ao voto, a peça mais sagrada de uma democracia é seu Orçamento. É ali que a sociedade pactua em quanto será tributada e onde vai alocar os recursos.

Um Congresso que falsifica o Orçamento afronta o contrato social, coloca em risco a solvência do País e perde legitimidade.