Ações de tecnologia desabando nas bolsas de todo o mundo, fundos do setor sofrendo com enormes perdas. No mercado privado, investidores tomados pelo pessimismo e sem referência de valor deixam de investir, congelando as captações de novos fundos.

As empresas que ainda queimam caixa cortam custos e demitem, enquanto as que não gozam de um caixa alto temem pelo seu futuro. O mantra é preservar aquilo que abundava mas se tornou rapidamente escasso: o dinheiro.

O ano é 2000 – e qualquer semelhança com 2022 não é mera coincidência; é apenas um ciclo que se repete, com contornos diferentes. Como empreendedor de tecnologia desde 1999, eu vi e sofri com o chamado estouro da bolha de 2000. Pior: queimando caixa, com saldo baixo no banco e o concorrente capitalizado. Felizmente, sobrevivi como empreendedor para dividir algumas reflexões com vocês.

O índice Nasdaq atingiu seu pico em 10 de março de 2000 depois de subir 400%, desde 1995, alimentado por uma euforia que permitia a companhias “de papel” e com apenas dois ativos – uma apresentação em Powerpoint e uma projeção em Excel – valerem bilhões de dólares num IPO sem sequer US$ 1 de receita.

Após o pico, o índice começa seu declínio até desmoronar 78% na sua mínima, em outubro de 2002; o pico de 2000 só foi alcançado novamente cinco anos depois. Em poucas semanas, saímos de um mundo onde tudo de tecnologia era bom, mesmo que fosse ruim, para um mundo onde tudo era ruim, mesmo que fosse bom.

Durante o ano de 2000, ainda cursando economia na universidade, eu e meus sócios estávamos tentando captar R$ 5 milhões para o Bondfaro, um comparador de preços pioneiro, concorrente do Buscapé, que havia recém anunciado sua rodada de US$ 6 milhões (um cheque gigantesco para a época), o que nos deixava em posição ainda mais delicada.

Como esperado, depois de inúmeras reuniões, voltamos para casa sem conseguir captar um real. Seguimos queimando caixa mensalmente, vendo o saldo no banco minguar e ainda assistindo o concorrente anunciar fortemente. E agora, José?

A expressão, que Carlos Drummond de Andrade incorporou com maestria a seu poema modernista de mesmo nome, está sempre pronta na boca para uma situação de desespero. “A festa acabou, a luz acabou, o povo sumiu, a noite esfriou, José está sem discurso, sem carinho.” José não sabe o que fazer: “quer abrir a porta, mas não existe porta,” não há sequer uma parede para encostar. A solução de Drummond: “você marcha, José.”  José é duro e sobrevive.

A morte, para José, não é uma opção, “quer morrer no mar, mas o mar secou”. Para nós, também não era. Primeiro, pois nenhum empreendedor quer abrir mão do seu sonho, o que era nosso caso. Sonho se adia, se ajusta, mas não se abandona, porque é o sonho que nos move adiante. Depois, por uma imposição da realidade: não havia dinheiro em caixa para fechar a companhia. Assim, seguimos marchando, como José.

O bear market em tecnologia teve muitas consequências negativas, mas não nos impediu de sermos criativos, muito pelo contrário. Ele exigiu o máximo de nós para nos adaptarmos rápido e sobrevivermos num ambiente bem diferente e desafiador. A crise não foi desperdiçada: a sobrevivência do Bondfaro, que depois fundiu-se com o Buscapé, foi o embrião da Mosaico, uma empresa dona destas duas marcas que abriu seu capital em fevereiro do ano passado e, recentemente, se fundiu com o Banco Pan.

Imagine gastar toda sua energia numa corrida de 100 metros e, quase no final, já com pouco fôlego, ser informado que a competição virou uma maratona. Esse foi o sentimento ao não conseguirmos captar para realizar o plano de negócios da companhia e descobrirmos que teríamos que sobreviver com o resíduo de caixa de modestos R$ 500 mil que havíamos levantado na rodada de seed capital. Lembrando que naquele tempo não existia tudo como serviço na nuvem: o setup de uma companhia tech envolvia investimento relevante em infraestrutura, como a montagem de um data center próprio.

O bear market nos ensinou a tomar decisões difíceis rápido, a sermos flexíveis e construir o negócio byte por byte, sempre com olho no resultado. Tivemos que demitir parte da equipe recém contratada, que estava motivada e meio sem entender como tudo aquilo poderia ter acontecido tão rápido.

Nós, fundadores, passamos a ganhar como os estagiários, e assim ficamos até que a empresa se tornasse lucrativa. O sonho da construção da marca com grandes campanhas foi trocado pelo marketing de performance – esse nome só surgiu mais tarde –  focado em trazer receita com retorno imediato nas mídias que apareciam e também precisavam sobreviver: o nascente email marketing, anúncios em texto na Overture (posteriormente adquirida pelo Yahoo!), portais e, mais tarde, no Google.

A captação acabou sendo 90% menor do que queríamos: os R$ 5 milhões viraram R$ 500 mil. Fizemos concessões no valuation e o dinheiro pingou em pequenas tranches, bancadas pelos investidores da rodada seed que o faziam relutantemente com a esperança de defender seu investimento original.

Após um inverno que durou dois longos anos, com um medo diário da empresa quebrar, a criatividade, o foco e a execução prevaleceram e trouxeram retorno paulatinamente a ponto de alçarmos o breakeven.

A partir daí, a empresa passou a ter capacidade de financiar seu crescimento, o que fez de forma orgânica e através de uma aquisição, além de expandir para a Argentina, Chile e México. Em 2005, o Bondfaro pagou dividendos a seus acionistas pela primeira vez, combinando com alto crescimento. Em 2006, se fundiu com o Buscapé e, em 2009, foi vendida para a Naspers. (Sim, depois recompramos o Buscapé, mas essa é outra história.)

Nos anos seguintes, houve outros ciclos de exuberância e retração do mercado, em menor escala do que o atual, mas o aprendizado de 2000 nos deixou mais preparados para navegar em qualquer mar – e também nos ensinou a reconhecer os ciclos, não “panicar”, e sim interpretá-los para operar melhor em cada um deles.

A crise nos obriga a ser mais criativos, produtivos e disciplinados, traz crescimento profissional e cria boas safras de empreendedores e empresas. A crise de 2009 deu ao mundo o Uber e o AirBnB, entre outros unicórnios que mudaram a vida do mundo para melhor.

Para o empreendedor, é hora de manter a calma para tomar as decisões certas – que neste momento são mais difíceis – e olhar para dentro buscando entender detalhadamente os fundamentos do negócio e as alavancas de lucratividade. É uma boa oportunidade de se livrar dos maus hábitos trazidos pelo dinheiro barato. Por fim, é imperativo preservar o caixa ao máximo, manter a equipe focada no desenvolvimento do produto e racionalizar o investimento em marketing.

As dores dos consumidores e as ineficiências de mercado – especialmente no Brasil – continuam existindo, assim como a recompensa para os empreendedores que as solucionarem. Só precisam ser resolvidos com mais criatividade e eficiência para compensar os recursos mais escassos, até que o próximo ciclo chegue. Naquele momento, o mercado voltará a diferenciar de forma eficaz o que é bom e o que é ruim e premiará aqueles que operaram bem nos momentos difíceis.

Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia, foi co-fundador do Bondfaro, da Mosaico, da Tessera Ventures e é conselheiro do Banco Pan.