Médico conceituado no Recife, o Dr. Fernando Cahú passou os últimos 44 anos atendendo em seus consultórios na Praia da Piedade e na Avenida João de Barros, religiosa e diligentemente. 

Sua rotina era pétrea: depois de trabalhar num dos consultórios, ia para casa, tomava banho, almoçava com a família, dormia, tomava outro banho e ia para o outro consultório.

Reumatologista tarimbado, consertou muita coluna torta, aliviou muita artrite. Atendia do governador do Estado ao paciente do SUS, sem cobiça nem vaidade.

Em agradecimento, os pacientes lhe traziam frutas, galinhas e até buchada de bode (certa vez, um deles presenteou a filha de 15 anos do dotô com um piano). Não eram raras as semanas em que a mala do carro transbordava de presentes. E Dr. Cahú reagia como se fosse sempre a primeira vez. 

Chamava todos os pacientes de Mago e Maga, um vocativo que ele mesmo inventou e sobre o qual nunca deu explicação.  

Era a simplicidade em pessoa, a empatia encarnada, o amor pela vida e pelo outro como profissão.

Esse era o meu pai.

Ser filha do Dr. Cahú sempre me deixou segura. 

No Salesiano do Recife — onde meu pai, minha irmã e eu estudamos — certa vez fui expulsa da sala pela professora de matemática do primário. Eu havia me espreguiçado, e ela disse que aquilo não era conduta de menina educada. 

Fiquei assustada, com vergonha, me levantei e fui para o corredor. Quando ela perguntou meu nome e a turma respondeu com o sobrenome, a professora me chamou de volta e quase pediu desculpas. Eu era a filha do médico dela.

Também já usei o santo nome de papai em vão. Na minha época, irmãs gêmeas não podiam estudar na mesma turma; tinha de ser em classes diferentes. Mas eu queria muito ir para a turma de Juliana por causa dos amigos — aliás, nossos amigos até hoje. 

Fui ao diretor da escola, o Padre Aguinaldo, sentei na frente dele e falei que papai estava muito debilitado. Confesso: disse que ele estava quase morrendo. (Papai tinha, sim, diabete, que eu usava para auferir pequenas vantagens.) Supostamente compungida, disse ao Padre que o desejo de papai era que suas duas filhas estudassem na mesma turma “para se unirem mais.”  A autorização saiu num átimo.

Só faltou combinar com mamãe. Em uma de suas visitas à escola, Padre Aguinaldo perguntou a ela se Papai já tinha se recuperado, e mamãe respondeu que ele não tinha nada. A verdade sempre aparece. Resultado: tive que voltar a estudar numa turma diferente.

Formado em medicina pela Universidade de Pernambuco em 1973, Papai viveu para a família e seus pacientes. Sempre disse que não saberia fazer outra coisa. “Não importa a classe social, a dor é igual para todos,” dizia. “Quando o remédio cura o paciente é para mim a melhor recompensa.”

Papai se divertia ao contar que mamãe pegava o pagamento das consultas particulares assim que ele chegava em casa. “Minha filha, nem vi o dinheiro.” 

Certa vez, papai chegou em casa e disse pra mamãe que um amigo havia pedido dinheiro emprestado para o tratamento de sua esposa, com câncer. “Mas Cahú, você tem certeza?,” questionou minha mãe.  “A gente tá com despesas altas, você está com a saúde instável… passou um tempo sem trabalhar…”  Papai escutou, entre quieto e triste. 

Dias depois, seu humor era outro.  Ao vê-lo alegre e rindo, perguntei, “Papai, você emprestou o dinheiro?” 

“Emprestei não — eu dei!  Porque quando é uma questão de saúde, quem pode deve dar a quem precisa.” 

Dr. Cahú deixa sua esposa de 46 anos de casamento, Mirtes, duas filhas, dois genros “maravilhosos” (como ele mesmo dizia) e quatro netos.

Todos agora vão honrar seu exemplo: cuidar dos vivos, com amor e desprendimento incondicionais.

 

Isabela Cahú é diretora jurídica da Claro e filha do Dr. Cahú.