Estou quase pedindo às companhias nas quais invisto para fechar o capital num pregão e fazer um novo IPO na manhã seguinte.
Durante a madrugada, elas ressurgiriam com um nome curto, moderno, um novo CEO com alguma experiência digital no currículo (não importa se bem sucedida), ao menos uma parte de seu negócio online (não importa se com margem bruta zero ou negativa), e uma bela história e novo plano de negócios que conquiste investidores — que naturalmente as defenderão nas redes sociais.
Já vi muita coisa em 20 anos de trabalho, e me considero experiente na minha profissão de gestor de renda variável, mas ultimamente este mercado tem me chamado a atenção.
Destaco três aspectos:
1. IPOs em meio à crise
No meio de uma crise econômica brutal que nos impede de ver com precisão sequer como estaremos no 2º semestre de 2020, e que traz muitas incertezas sobre o futuro econômico do mundo, estamos vendo uma safra intensa de ofertas públicas de ações no mercado brasileiro.
E que safra!
Entre IPOs e follow-ons dá pra ver de tudo: redes de farmácias que penam para dar resultado, incorporadoras que nunca tiveram escala, restaurantes esvaziados pela crise, novas varejistas de luxo, de materiais de construção (e que já entram no mercado como corporações), small caps esquecidas que tentam uma reestreia, e – obviamente – muitos recursos para os intermináveis investimentos online, na corrida para ver quem terá mais chances de sobreviver.
É dinheiro a rodo, e direcionado para empresas e negócios que não necessariamente apresentam os melhores históricos ou perspectivas de entrega futura. O benefício da dúvida está sendo dado num momento excepcionalmente adverso a companhias que não acessariam facilmente o mercado sequer em tempos de calmaria.
2. Só vale muito se for digital
Essa relevância da digitalização também me surpreende. Claro que não há o que discutir quanto ao rumo do mundo neste sentido: é óbvio que estamos todos cada vez mais digitais e conectados.
O que me espanta é o valor atribuído ao digital.
CEOs são obrigados a colocar o digital como tema central, sob risco de serem vistos como ultrapassados. Para fugir da “disrupção” em seus mercados, companhias são impelidas a acelerar e incrementar a qualquer custo investimentos em operações online e até mesmo a criar áreas de relacionamento e investimento direto em startups. E por que isso ocorre?
Porque os investidores estão pagando muito pelo preço das ações de companhias que estejam – ou pareçam estar – bem inseridas no mundo digital. Contudo, como muitas vezes não há lucro nas operações online, as análises comparativas e relatórios são feitos usando múltiplos de preço das ações pelo faturamento digital das empresas, imaginando-se – no caso do varejo — que a história vencedora da Amazon nos EUA (uma das ações caras que deu certo) será replicada no Brasil por outras companhias com histórias e competências completamente distintas.
Enquanto isso, paga-se muito menos pelo lucro atual e “tradicional” — não digital — de empresas até hoje bem sucedidas e que não necessariamente serão perdedoras futuras, estejam elas se adequando ou não aos novos padrões digitais. Ou alguém imagina que a Hypera, negociada a 13x lucro de 2021, será disruptada e perderá sua geração de caixa bruta de R$ 2 bilhões rapidamente?
3. As pessoas físicas querem ações
Me disseram, não sei se você sabe, que o CDI acabou. Fiquei feliz quando ouvi que a partir de agora só será possível ganhar dinheiro no Brasil investindo em ações – sou moderno há muito tempo e não sabia!
O fato é que as pessoas físicas estão entrando em peso na B3, fugindo da nanoSelic e das aplicações tradicionais nos bancões, e felizmente tem sido bem sucedidas, ainda que em ambiente inóspito. Foi o dinheiro delas, inclusive, que promoveu a rápida e vigorosa recuperação do Ibovespa verificada até o momento, tomando posições até então ocupadas por investidores estrangeiros, criando o clima para todos os IPOs e follow-ons atuais.
Eu, que já recebi mensagem de amigos em grupo de WhatsApp perguntando se tinha saudades da VALE3 a 43 reais, e que nas reuniões de família passo um tempo tentando explicar o múltiplo elevado de preço/lucro da Weg, posso constatar que o fluxo rumo à B3 é verdadeiramente forte e tem sido constante. Depois de tanto tempo sonhando que a realidade lá de fora se concretizasse aqui, é bom demais constatar que a renda variável está tomando mercado.
Mas não dá para ver só as oportunidades, desprezando os riscos. Quem conhece o mercado sabe que nem sempre se ganha, e que a volatilidade machuca. Se os profissionais — que se dedicam exaustivamente ao trabalho e competem entre si pelos melhores resultados — perdem dinheiro com suas decisões e recomendações, o que será das pessoas físicas com pouca experiência e, no geral, pouco conhecimento?
Como as redes sociais lidarão com o bear market quando este demorar mais do que o de 2020, que apesar de intenso foi de curta duração por conta do salvamento combinado dos BCs e governos mundiais? Terão paciência e confiança suficientes para não vender na baixa e voltar para a renda fixa de onde vieram?
Não me entendam mal. Não estou torcendo contra ou a favor. Tenho mais dúvidas do que certezas, mas acho oportuno compartilhar estes alertas.
Uma pandemia que para o mundo, um CDI “morto” que faz os brasileiros investir em ações em massa.
Investidores maximizando o efeito das baixas taxas de desconto e do digital, e minimizando a grande incerteza dos fluxos de caixa futuros, desprezando lucros caixa de hoje.
Só falta alguém dizer que “desta vez é diferente.”
Wagner Faccini Salaverry é sócio e gestor de renda variável da Quantitas Gestão de Recursos.