No momento em que a exaustão das grandes marcas e os problemas na Kraft Heinz abriram uma espécie de revisionismo sobre o legado empresarial de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, o Grupo Companhia das Letras se prepara para lançar a primeira biografia independente da Anheuser-Busch Inbev — um olhar detalhado sobre a construção da maior história de sucesso do capitalismo brasileiro.
 
“De um gole só.  A história da AmBev e a criação da maior cervejaria do mundo” (Portfolio-Penguin, 415 páginas, R$69,90) sai apenas em junho, mas a pré-venda começou hoje.
 
O ‘um gole só’ do título, naturalmente, é apenas metafórico.  A história da ABI foi construída em cinco goles — começando com a compra da Brahma em 1989, passando pela fusão com a Antarctica que formou a Ambev em 2000, a aliança com a Interbrew belga (que formou a InBev), e as compras da Anheuser-Busch e da SABMiller.

“A mais bem-sucedida multinacional brasileira”, nas palavras da autora, foi uma construção coletiva.  Juntou o legado cervejeiro dos belgas, o tino empresarial da família Busch e o senso de oportunidade de Lemann, Telles e Sicupira — sem falar na contribuição de Vicente Falconi, que com o apoio do trio criou um novo benchmark de eficiência entre as empresas nacionais.
 
Se hoje as empresas do grupo são “acusadas” de se concentrar no corte de custos em detrimento da inovação, a história da ABI mostra que a criação deste padrão espartano nos custos nunca foi uma obviedade — e o pêndulo da história talvez, um dia, volte a reconhecer esta contribuição.
 
Escrito por Ariane Abdallah — uma ex-repórter das revistas TPM (da Editora Trip) e Época Negócios — o livro revela bastidores dos primórdios da história, detalha os choques de cultura a cada nova fusão/aquisição e o peso para a companhia em haver se tornado referência em gestão. 
 
“Meu objetivo foi fazer um livro sóbrio, sem juizo de valor,” diz Ariane. “Quem não gosta da história do grupo terá elementos para gostar menos ainda, e quem ama vai amar ainda mais.”
 
Ariane já foi ‘ghost writer’ de uma dezena de projetos, mas este é seu livro de estreia assinando como autora (sem contar o drama adolescente que ela escreveu na infame idade de 13 anos). 
 
Ao longo dos últimos três anos, ela entrevistou aproximadamente 170 pessoas, incluindo ex-executivos, banqueiros, investidores, advogados, fornecedores, cervejeiros e técnicos de cervejarias artesanais e concorrentes no Brasil e no exterior. Além disso, visitou operações da empresa em São Paulo, Nova York, St. Louis, Leuven e Joanesburgo.
 
A saga da ABI já foi contada em parte, com grande sucesso, pelo livro “Sonho Grande”, da jornalista Cristiane Correa.  O livro já vendeu mais de 500 mil exemplares e foi traduzido em seis países, mas foca mais na figura do trio e sua forma de fazer negócios, e a Ambev é apenas parte da narrativa.  Nos EUA, outra jornalista, Julie Macintosh — que cobriu o takeover da Anheuser-Busch pelo Financial Times — escreveu “Dethroning the King: The Hostile Takeover of Anheuser-Busch, an American Icon”, mas aquele livro trata somente da aquisição.
 
Ariane — que teve acesso a Carlos Brito, Ricardo Tadeu, Roberto Thompson (o ‘quarto sócio’ da 3G) e Adolphus Busch IV — aborda as vitórias e as crises: o desafio de reverter a imagem polêmica que se criou entre os consumidores brasileiros; os dilemas da ABI em haver se tornado uma gigante num setor em transformação (sem que haja um caminho claro para continuar crescendo); e, principalmente, a crise atual, que coloca em xeque o modelo de gestão que trouxe a companhia até aqui.
 
“O Brasil é o lugar onde a imagem da empresa está mais machucada,” diz Ariane. O livro tenta entender como isso aconteceu, “e separar o que é fato do que é mito.” 
 
Ela se debruça, por exemplo, sobre a meritocracia da empresa — que era o benchmark do mercado até recentemente — e sua exigência de performance: a rotina de trabalho exaustiva, os salários abaixo do mercado, e uma carreira que não necessariamente deixa o funcionário rico.  “Existe essa hipercompetitividade: lá não basta você trabalhar muito, você tem que ser melhor do que o outro porque tem um funil.”
 
Num país que reclama muito da qualidade da cerveja, o livro também discute o que é qualidade para a Ambev.  
 
“Entrevistei cervejeiros artesanais e especialistas em cerveja e ouvi muitas críticas ao produto. Falam muito sobre qualidade de receitas, tradições, gostos, que são temas mais subjetivos. Mas as mais contundentes são feitas por pessoas que não estão próximas da companhia: quando você chega perto, muitas críticas não se sustentam. Por exemplo, do ponto de vista de segurança alimentar e tecnologia de fabricação, o produto é excelente.”
 
Pergunto a Ariane se as aspas acima não estão muito em cima do muro.  “A questão é que eu busquei realmente a neutralidade. Não pretendo opinar, quis apresentar a empresa para que cada um tire as suas conclusões de acordo com os próprios valores.” 
 
Neste tempo de polarização e opiniões extremas, talvez este seja exatamente o tipo de livro que o País precisa.
 
 
Abaixo, excertos do livro, cedidos com exclusividade ao Brazil Journal.
 
O assunto veio à tona em uma reunião intensa entre Brito e o conselho de administração da AB Inbev. Os conselheiros estavam decepcionados com o fato de a empresa ter demorado demais para se envolver no que consideravam tendências de consumo claras. “Acho que demorou um pouquinho para cair a nossa ficha”, diz Roberto Thompson, membro do conselho da AB Inbev nessa época. “Minha impressão é de que talvez tenhamos dado muitas desculpas internamente para o fato de as cervejarias artesanais estarem crescendo.” Os empresários e executivos se convenciam de que não precisavam incluir o tema em seus planejamentos, acreditando que o movimento teria um prazo de validade natural.

Depois daquele encontro, Brito voltou para sua mesa questionando a si mesmo sobre como havia deixado passar os sinais do mercado, apesar de trabalhar na cervejaria havia tantos anos. Thompson tem uma hipótese: atribui a demora da empresa em reagir ao novo mercado a uma das mais reconhecidas forças do modelo da AB Inbev, o foco em seus negócios. Além de fazer cerveja, a empresa é especialista em grandes aquisições. A própria Brahma havia sido comprada pelos sócios do banco Garantia. Então se fundiu com a Antarctica, formando a Ambev, em 2000. Que se juntou aos belgas em 2004, criando a maior multinacional do setor. E fez a maior transação em dinheiro do mundo ao adquirir a dona da Budweiser em 2008. Diante de passos tão ousados, as cervejarias artesanais pareciam ser pedrinhas quase invisíveis pelo caminho. Mas a realidade era que estavam mais para a ponta do iceberg.

A equipe executiva da AB Inbev acusou o golpe. Havia negligenciado a importância da concorrência. Agora, precisavam agir urgentemente e de maneira criativa para responder ao novo mercado. Nas primeiras conversas sobre o tema, uma das opções apresentadas foi posicionar alguma das marcas premium já existente no nicho artesanal. Mas elas não seriam independentes, por isso logo descartaram a possibilidade. Seria preciso encontrar um novo caminho. E ele passava por comprar uma verdadeira cervejaria artesanal.

A aposta exigiria desapegar da tentativa de padronizar tudo o que fosse possível no processo — justamente o contrário do que os executivos haviam consistente e obsessivamente feito ao longo de quase trinta anos. Se a especialidade deles era simplificar — custos, sistemas, estruturas —, teriam de aprender a se virar em um ambiente complexo e pouco controlável.

 
 
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[Aquisição da Anheuser-Busch, durante a crise econômica de 2008]
 
Os executivos mostraram as conclusões de sua pesquisa de campo ao conselho da Inbev. Os US$ 35 bilhões possíveis eram pouco, diziam os controladores da empresa. Precisavam de mais. Podiam até oferecer uma parte em equity se necessário (isto é, participação acionária na companhia, ofertada a investidores por meio da emissão de novas ações em troca de capital). Mas determinaram que esse valor não passaria de US$ 9,8 bilhões, uma parte dos quais os acionistas brasileiros e belgas concordaram em injetar para evitar que seu controle sobre a companhia fosse diluído. No total, queriam estar aptos a oferecer até cerca de US$ 55 bilhões aos norte-americanos. Para isso, precisavam convencer o mercado financeiro a esticar seu limite de empréstimo em mais de US$ 10 bilhões. De qualquer modo, a possibilidade do equity era o plano B, caso não aceitassem a oferta inicial.
Os próprios executivos silenciaram ao ouvir a decisão dos acionistas da Inbev. Estavam exaustos, dormindo duas ou três horas por noite havia semanas. “Se não conseguirmos US$ 45 bilhões, não tem acordo”, disse Jorge Paulo Lemann. De repente, cancelar o negócio parecia o desfecho óbvio. Mas eles fariam o impossível para evitar essa alternativa.

Se os banqueiros levaram um susto com o plano da Inbev de comprar a Anheuser-Busch, ficaram incrédulos diante do ultimato financeiro. Todas as instituições consultadas, sem exceção, responderam de início que era impossível viabilizar o negócio.

Apesar da frustração nas conversas com os banqueiros que se seguiram à decisão de Lemann, o Santander se revelou um fiel aliado. Em uma reunião que durou quinze horas, das 14h às 5h, dois executivos do banco espanhol dispensaram a apresentação em Power Point preparada pela equipe de Felipe Dutra. Pediram para abrir uma planilha de Excel em branco e preencheram seu modelo na hora, com indicadores do balanço da empresa e projeções para ver se o negócio ficaria de pé. No dia seguinte, concluíram que, embora não fosse fácil, a conta poderia fechar. O crédito estava aprovado. Foi a faísca de ânimo de que os executivos precisavam. O mercado financeiro é instável por natureza e baseia grande parte de suas decisões em projeções. Quando o Santander topou, o jogo começou a mudar em favor da Inbev — o que tampouco significava menos esforço dos executivos. Nos meses seguintes, foi preciso convencer outros bancos, adaptando-se à dinâmica de cada um. Em um dos casos, foram necessárias sete reuniões, algumas com trinta pessoas na sala até chegar ao veredito positivo. O medo de correr aquele risco sem precedentes de repente parecia menor do que o de ficar de fora dele. Entre os dez bancos que disseram “sim”, a maioria eram europeus, um era japonês e outro (apenas um) era norte-americano, o último a assinar o acordo.

Além de todo o drama para conseguir garantias de que pagariam a conta, havia uma preocupação dos brasileiros e belgas com a imagem da companhia caso a aquisição fosse realizada. O consultor responsável por planejar a estratégia de comunicação da operação, Steven Lipin, então sócio sênior do Brunswick Group nos Estados Unidos, participou do negócio e lembra a angústia dos brasileiros. “Eles estavam realmente preocupados por ser compradores estrangeiros diante da joia da América e com como os americanos poderiam reagir.” Mesmo assim, foram em frente. Coube a Brito assinar a carta que chegaria por fax a August iv, no dia 11 de junho de 2008.