Semanas atrás, Henry Kravis, o lendário fundador do KKR, comprou quatro retratos do artista brasileiro Dalton Paula e os doou ao Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque.
A incrível história de como um artista ainda em ascensão e pouco conhecido fora do meio das artes foi parar nas paredes MoMA mistura um talento original, uma matéria prima farta e um zeitgeist que finalmente pede que esta história seja contada.
Nascido em Brasília e criado em Goiânia, onde mora até hoje, desde pequeno Dalton adorava desenhar, em parte instigado pelas visitas ao museu de belas artes da capital. Mas para garantir o sustento da família, a aposta mais segura era fazer o concurso para bombeiro, profissão que exerceu por 10 anos.
Durante uma licença do trabalho em 2012, Dalton participou de uma residência em Salvador, onde conheceu a artista e curadora Maria Montero. Maria, que na época nem pensava em ter uma galeria, ficou impressionada com as fotografias e a performance do artista, e ao ver suas pinturas teve a certeza de estar diante de um gigante.
Os dois se arriscaram: Maria resolveu empreender e abriu a Sé Galeria, tendo Dalton como seu primeiro artista representado.
Em apenas seis anos — desde a primeira exposição na Sé, em 2014 — um turbilhão de eventos transformou a vida de Dalton, que entrou nas principais coleções do Brasil e conquistou as críticas nacional e internacional.
Apesar do sucesso estrondoso, Dalton mantém intacta sua essência doce, sensível e intuitiva, buscando inspiração em rituais, festas populares, congadas, terreiros e quilombos que contam a história afro-brasileira. O orgulho do rosto negro, seus traços e formas, virou sua assinatura, e Dalton deliberadamente altera a forma como as mulheres negras eram caricatamente retratadas, seja nos cabelos ou nas roupas decotadas. Nas pinturas, há uma afirmação positiva das características do corpo negro, sua dignidade e beleza — como o nariz preenchido em vários tons de bege e marrom, que desponta da tela de forma altiva.
Em 2016, dois anos depois da primeira exposição, Dalton figurou dentre os artistas da 32ª Bienal de São Paulo, intitulada Incerteza Viva, onde foi destaque de público e crítica. Em 2018, na exposição Histórias Afro-Atlânticas do MASP, seus dois retratos de líderes negros de quilombos — Zeferina e João de Deus Nascimento — foram parar na capa do catálogo. Ainda naquele ano, Dalton participou da Triennial do New Museum e passou a ser representado também por uma galeria americana, a Alexander & Bonin, que desde sábado está expondo 24 de suas obras, quase todas vendidas antes da abertura.
Zeferina, um de seus retratos mais conhecidos, causa impacto. Primeiro por se tratar da líder das insurreições negras na Bahia, que conseguiu unificar, em pleno século XIX, homens e mulheres na fundação do quilombo do Urubu. Segundo, por capturar a força de uma guerreira com a elegância de uma rainha. Os brincos de Zeferina não estão pintados, percebe-se apenas a cor da tela, apontando a ausência de posse e de um espaço social.
Outro elemento que chama atenção é o uso de duas telas juntas, com o personagem ao centro, em cima da linha divisória, gerando certo incômodo ao espectador. Tal prática vem do hábito de desenhar em caderno e a necessidade de aproveitar ao máximo o espaço, o que se repetiu na pintura, quando Dalton queria pintar obras maiores e as telas não cabiam em seu apartamento. A partir daí, passou a explorar o mistério das frestas e junções.
Dalton trabalha problemas políticos, sociais e éticos — como escravidão e a exclusão social dos afro-brasileiros — com originalidade, inteligência crítica e fundamento histórico. Envolve o espectador em sua sutileza e o conduz a uma releitura da história sob outra perspectiva, mais ética e inclusiva.
Acontecendo numa época em que os EUA confrontam a ferida aberta do racismo — e em que o Brasil sequer aceitou reconhecer a sua — a descoberta de Dalton pelo mainstream internacional é carregada de uma simbologia ainda maior. Aqui está um homem negro, de um país predominantemente misturado, resgatando e celebrando uma herança cultural rica, pouco conhecida e marginalizada.
Camilla Barella, consultora cultural e representante da feira internacional Frieze, foi uma das primeiras pessoas a comprar uma obra do jovem artista e o acompanha desde o começo. “Quando o Dalton Paula, artista negro da periferia do centro-oeste do Brasil, ganha voz no mundo, muitos outros personagens que foram apagados da história ganham voz e vida,” diz Camilla. “O que ele comunica por meio de sua obra é de extrema urgência e importância e com uma potência rara, por isso não me surpreende o seu reconhecimento internacional.”
Este reconhecimento nos lembra que o Brasil conta com uma produção artística resiliente, apesar de todas as dificuldades de acesso à educação e profissionalização, ainda mais acentuadas para os artistas negros. Além de Dalton, Sonia Gomes também abriu uma exposição em Nova Iorque este mês que foi assunto do The New York Times. Sonia, como Dalton, não é uma ativista, embora suas obras, calcadas em referências da cultura negra, tão negligenciada na história da arte, tenham potencial transformador para as novas gerações.
Na última mostra na Sé Galeria, alguns meses antes da pandemia, Dalton trouxe desenhos e uma instalação com 54 pinturas em lamparinas. No texto da exposição, Maria Monteiro lembrou que as lamparinas, como a arte, servem para iluminar em cada um de nós aquilo que ainda está por vir. E no caso de Dalton Paula, o por vir promete ser ainda mais extraordinário.
Rita Drummond é frequentadora de galerias e museus. Nas fotos acima, ‘Zeferina’ à esquerda e ‘João de Deus Nascimento’ à direita.