Em 2020, o ano da pandemia, o Brasil teve um déficit primário do setor público de R$ 700 bilhões (10% do PIB). Naquele ano, se esperavam resultados negativos nos dois anos seguintes, mas isso não aconteceu.
A forte recuperação da arrecadação graças à combinação de aumento de preço de commodities, inflação e crescimento real do PIB – além do controle da despesa com pessoal – nos levou a dois anos consecutivos de superávit primário (2021 e 2022) e, este ano, ao primeiro resultado positivo para o Governo Central desde 2013.
Agora, a grande maioria dos economistas já projeta a volta de déficits primários para o Governo Central e o setor público a partir de 2023, implicando em uma trajetória crescente para a dívida pública como percentual do PIB.
Entre as razões para a volta dos déficits primários estão a queda na arrecadação e o aumento permanente da despesa, o que poderia nos levar a um início de governo com déficit primário do setor público de 0,5%, 1% ou mais do PIB.
Isso pode ser evitado? Sim.
É possível alcançar um resultado fiscal melhor no próximo ano e nos seguintes com a reversão, se não de todas, de pelo menos algumas das medidas adotadas em 2022.
Primeiro: dada a expectativa quase consensual de queda da arrecadação federal no próximo ano, não seria desejável tornar um crescimento temporário de despesa em aumento permanente. No entanto, será difícil voltar o Auxílio Brasil para o valor de R$ 400.
De 2003 a 2019, o Bolsa Família/Auxílio Brasil nunca passou de R$ 50 bilhões (0,5% do PIB). Agora, triplicará para cerca de R$ 150 bilhões (1,5% do PIB), beneficiando 21 milhões de famílias.
Será preciso, no entanto, encontrar uma fonte de recursos (um aumento permanente da receita ou corte de despesas) para pagar essa conta sem aumentar o déficit primário e a dívida.
Segundo: vários dos programas deste ano – auxílio gás, auxílio caminhoneiro, auxílio taxistas, etc – estão programados para terminar este ano e não devem ser renovados. Esses programas anualizados correspondem a 0,2 ponto do PIB de despesa que será cortada no próximo ano, pois não há uma situação de emergência que poderia justificar a continuidade desses programas, não sendo certo sequer que essa emergência existia em 2022. O corte desses programas não abre espaço fiscal para novas despesas. A descontinuidade desses programas apenas diminui o tamanho do ajuste fiscal.
Terceiro: a redução do IPI para produtos industriais e a redução para “zero” dos impostos federais (PIS/Cofins) sobre combustíveis deveriam – ambas – terminar este ano. A redução desses impostos não prejudicou as contas de 2022 porque o governo central terá mais de 1% do PIB de receita extraordinária de dividendos e privatização da Eletrobras. Mas essas reduções de impostos federais não deveriam continuar, dada a projeção de perda de arrecadação esperada para o próximo ano e a necessidade de um ajuste fiscal de pelo menos 2,5 pontos do PIB ao longo dos próximos anos. A reversão dessas duas medidas devolveria 0,7% do PIB para o governo central em 2023.
Se o desejo for não aumentar o IPI, o próximo governo terá que buscar uma fonte nova de receita. Há opções.
Nos últimos 20 anos, por exemplo, cresceram muito os regimes especiais de tributação, e muitos desses regimes deveriam ser revistos tanto por justiça social quanto por necessidade fiscal. Por que a faixa de isenção de imposto de renda dobra para quem é aposentado ou pensionista com 65 anos ou mais de idade, independente da renda? Este benefício tem um custo de mais de R$ 10 bilhões por ano. Por que se permite dedução integral do gasto com saúde privado em um país com sistema de saúde público, universal e gratuito? Por que uma pessoa jurídica personalíssima (empresa sem empregados) paga apenas 14,5% da sua renda como imposto no regime de lucro presumido quando um empregado paga uma alíquota marginal de 27,5%?
Considerando o tamanho da dívida pública hoje e os juros que incidem sobre ela – e assumindo que a economia consiga crescer 2,5% ao ano nos três últimos anos do mandato – a dívida só vai parar de crescer no final deste novo governo Lula se (e apenas se) ele arranjar um corte de despesas ou aumento de impostos que tragam pelo menos R$ 250 bilhões (2,5% do PIB) ao Tesouro a cada ano.
Alguns dirão que esse sacrifício é enorme – mas convém considerar as alternativas. A falta de um ajuste vai manter a Selic alta por muito mais tempo, sufocando a pequena empresa e o cidadão já endividado, e vai manter a inflação mais alta, corroendo o poder de compra da população mais pobre.
Por outro lado, um ajuste corajoso – com um olhar para a economia no final do mandato – gera um círculo virtuoso, em que a confiança dos investidores derruba a taxa de juros e a inflação, e faz o setor privado puxar o gatilho do investimento, gerando mais emprego e renda para os trabalhadores – o que é fundamental no desafio de redução consistente da pobreza.
O início de governo é o momento correto para mostrar a estratégia de ajuste fiscal. Isso já foi feito antes, inclusive pelo Presidente Lula. A história é repleta de exemplos bem sucedidos.
Em 1999, no segundo governo FHC, além do aumento de vários impostos e contribuições, o governo recriou a CPMF com alíquota de 0,38%. A CPMF é uma péssima forma de arrecadar, mas foi defendida pela equipe econômica à época como sendo necessária para que o governo entregasse a meta de primário acordada com o FMI. Essa estratégia não é aconselhável na realidade de hoje do Brasil, com carga tributária de 34% do PIB, muito acima da média de 23% da América Latina.
Em 2003, no primeiro governo Lula, o governo federal cortou o investimento público pela metade e aumentou a alíquota do PIS/Cofins no contexto de uma mudança tributária para arrecadar mais e entregar o aumento planejado no superávit primário. O corte do investimento público foi uma medida difícil, acompanhada de uma mudança estrutural importante com a reforma da previdência do setor público, que acabou com a paridade entre os salários dos ativos e inativos do governo central e instituiu a contribuição previdenciária para funcionários públicos já aposentados.
Em 2015, Paulo Hartung assumiu o Espírito Santo com o slogan que dá nome a este artigo, e cujas simplicidade e verdade são indiscutíveis: “Cuidar das contas é cuidar das pessoas”. Com Hartung, o Espírito Santo foi o único estado a obter nota “A” do Tesouro Nacional, o maior selo de responsabilidade fiscal.
Em 2016 e 2017, no governo Temer, além da aprovação do teto de gastos, diversos programas foram reduzidos – Minha Casa Minha Vida, FIES, subsídios do BNDES – e os impostos sobre combustíveis foram majorados para cumprir a meta do primário, em 2017. Medidas impopulares? Sim, mas necessárias para reduzir o enorme déficit primário de 2,5% do PIB que veio do governo anterior em uma conjuntura de recessão – dois anos seguidos de queda do PIB (2015-16) e quatro anos seguidos (2014-17) de queda da taxa de investimento.
Por sua vez, em 2019, o governo Bolsonaro aprovou a reforma da previdência e congelou o valor real do salário-mínimo, uma medida que ajudou a controlar a despesa previdenciária que responde por mais da metade da despesa não financeira do governo central. Adicionalmente, os concursos públicos foram reduzidos e os salários de servidores federais foram congelados por três anos, o que reduziu a despesa com pessoal em 0,8 pontos do PIB em quatro anos.
Para quem acha que o ajuste fiscal que se faz necessário hoje é inaceitável, convém olhar também o que está acontecendo no Reino Unido. Lá, o novo primeiro-ministro está tentando construir um orçamento que permita estancar o crescimento da dívida pública já no próximo ano. Aqui no Brasil, estamos falando em conseguir isso só daqui a quatro anos – um prazo muito mais largo, mas que traria credibilidade ao novo governo.
Não há nenhuma regra fiscal que possa evitar que um governo tenha que tomar decisões difíceis – tanto do lado da despesa quanto dos impostos. É melhor que essas medidas sejam apresentadas rapidamente para garantir a queda da taxa de juros, a redução da inflação e o crescimento mais forte do PIB nos próximos anos.
O melhor jeito de cuidar das pessoas é aceitar que, às vezes, o remédio é mesmo amargo, mas as alternativas são piores. O ajuste fiscal precisará ser feito não para agradar a Faria Lima, mas para fazer a economia girar a serviço dos brasileiros.
Mansueto Almeida é economista-chefe do BTG Pactual. Foi Secretário do Tesouro e Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.