Já vimos esse filme antes.
 
Crises agudas conduzem a debates acalorados. O ambiente é de frustração generalizada com o despreparo do governo em enfrentar o avanço do vírus, a crise na saúde e seus impactos econômicos. As abordagens econômicas tradicionais não produzirão resultados esperados enquanto a imunidade não for alcançada. Surge, assim, um ambiente propício ao desenvolvimento de velhas idéias, ora repaginadas, sob o argumento da excepcionalidade. A proposta imprimir moeda para pagar a conta fiscal é um erro, velho e conhecido.

É consenso entre economistas de que este é o momento de gastos fiscais volumosos e bem focados. Faz-se necessário manter dentro do possível a renda dos trabalhadores, assim como dar liquidez às empresas para que possam fazer a travessia. Há duas formas de financiamento do enorme déficit que enfrentaremos. A primeira é o endividamento público, com a transferência de recursos entre gerações. A segunda é a impressão de moeda, seja diretamente ou indiretamente com o Banco Central recomprando os títulos emitidos pelo Tesouro. A escolha ótima entre essas duas formas depende de variáveis como a taxa de poupança, a taxa de juros de equilíbrio da economia, a disposição das pessoas em carregar dívida e moeda, a abertura da conta capital, entre outras.

Imprimir moeda não é uma panaceia. São três as principais razões. Em primeiro lugar, mesmo os déficits financiados por dinheiro fazem com que o governo incorra em dívida. Isso porque, em um regime de metas de inflação, o BC fixa uma taxa de juros e precisa prover a quantidade de moeda demandada pelo sistema para atingir essa taxa. Se o BC passar a emitir moeda, haverá aumento da liquidez no mercado e a taxa Selic ficará abaixo do valor fixado pelo Copom. O BC terá então que vender títulos públicos (via operações compromissadas) para reduzir a liquidez e elevar os juros. É claro que se a taxa Selic for colocada em zero, o custo fica nulo. Resta saber se é possível colocar a Selic em zero e por quanto tempo. 

A possibilidade da Selic ir a zero está relacionada à segunda razão. O Brasil não é uma economia fechada em termos de fluxo de capitais. Para manter a Selic em zero seria preciso convencer os financiadores da dívida pública a comprar títulos brasileiros com rendimentos tão baixos quanto de outros países com risco muito menor. Se os investidores estão relutantes em manter títulos públicos, provavelmente também não ficarão muito empolgados em manter nossa moeda. 

Aqui está o principal fator ignorado na proposta de emissão monetária: o Brasil é uma economia aberta aos fluxos financeiros e dependente de poupança externa.  A comparação com países do G7 é equivocada. O Fed fez uma impressão extraordinária de moeda e não gerou saída de capitais nem forte desvalorização do dólar, muito pelo contrário. Isso se deve ao fato do dólar ser meio de troca e reserva de valor internacional. Somos um país emergente, sem histórico longo de uma combinação de políticas monetárias e fiscais sustentáveis. Tampouco temos uma taxa de poupança como a japonesa, que permite ao Japão se financiar com taxa zero ou mesmo negativa. Inclusive, quando a aversão ao risco aumenta, o japonês repatria seus volumosos recursos aplicados no exterior e o yen se valoriza.

Em terceiro lugar, moeda fraca é moeda com o vírus da inflação. Estamos sim com uma capacidade ociosa enorme e com as expectativas de inflação colapsando. Até agora, não há sinal de repasse cambial. Isso se sustenta com um país em crise institucional e com o processo eleitoral já antecipado? Os gastos serão mesmo temporários? Se não forem, o BC poderá subir os juros e abandonar a emissão de moeda? Até pode. Mas pode também ser tarde demais com a economia já dolarizada e com a perda da âncora monetária. A questão é se vale a pena incorremos nesse risco de mandar para o exterior a poupança doméstica. Parece fazer mais sentido nos compararmos com a Argentina.

As três razões acima poderiam ser rebatidas com o argumento de que se a dívida pública entrar em trajetória insustentável, entraremos em dominância fiscal e a política de metas de inflação tão pouco se sustentará. Pode ser.

 
Mas o que não é verdade é que a emissão de moeda é uma alternativa melhor. Restrições orçamentárias sempre existiram e existirão. Se não pagarmos a conta via controle do orçamento, a inflação, um imposto altamente regressivo, voltará a ser nosso maior problema.

É melhor ser transparente em momentos de crise. Nada pesa mais na tendência de crescimento de longo prazo de um país como sair destruindo fundamentos tão difíceis de serem arrumados depois. Foi assim com a conta movimento do período militar e com a política de subsídios do governo Dilma. Não podemos tomar a estabilidade da moeda e a queda dos juros como algo dado.

Não é o momento para idéias simplistas como a de que é possível o governo gastar mais sem impor ônus. A impressão de dinheiro não é menos custosa do que o endividamento, no entanto, seu custo é pouco transparente para a sociedade.
 
Solange Srour é economista-chefe da ARX Investimentos.