Nota do editor: Alerta de entrevista longa — ainda que esclarecedora.
Um dos renomados tributaristas do País, Luiz Gustavo Bichara comemora a aprovação da reforma que vinha sendo debatida há três décadas, mas adverte: o IVA vai facilitar a vida das empresas, mas a carga de impostos paga pelos brasileiros, hoje em torno de 34% do PIB, pode aumentar antes mesmo da adoção do novo regime.
“Tenho receio de que se aproveite o momento conturbado de mudança — em decorrência da coexistência dos dois regimes (o velho e o novo) até 2033 — para se promover aumento de carga. Digo isso por tudo o que a gente tem visto, e sobretudo pela voracidade arrecadatória do Governo,” Bichara disse ao Brazil Journal. “Os governadores já estão aumentando o ICMS para chegarem com alíquotas maiores na transição. O ministro da Fazenda, por sua vez, não tem outro assunto senão o aumento da carga.”
Bichara participou ativamente dos debates da reforma nos últimos anos. Em abril de 2022, foi convidado a integrar uma comissão de juristas criada pelo Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF), com a missão de propor mudanças nas leis que disciplinam os processos administrativos e tributários.
É por isso que o tributarista estranhou a decisão do governo de não incluir representantes da sociedade civil nos grupos de trabalho recém criados para elaborar os projetos de leis complementares que regulamentarão os dispositivos da reforma aprovada em dezembro. Como o mote das mudanças é a simplificação do sistema, Bichara teme o que acontecerá na regulamentação.
“O cuidado na elaboração dessas leis é que definirá se teremos um sistema tributário claro e transparente ou uma legislação confusa que exigirá mais discussões judiciais,” observa. “A participação da sociedade seria essencial na elaboração de um texto claro, que evitasse contencioso futuro.”
Nesta entrevista, Bichara diz que — devido às altíssimas alíquotas do IVA que União, estados e municípios já avisaram que vão cobrar — o novo sistema tributário será ainda mais regressivo que o atual, isto é, mais injusto com as classes de renda baixa.
Para ele, a reforma deveria ter começado pela tributação da renda.
“A participação dos impostos sobre a renda no Brasil é de apenas 21%, enquanto na média dos países da OCDE é de 34,1%. Já os impostos sobre consumo respondem por 49,7% da arrecadação total brasileira, ante 32,4% na média da OCDE,” compara Bichara.
Abaixo, os principais trechos da conversa:
Depois de três décadas de tentativas fracassadas, o Congresso aprovou a reforma tributária. Qual é a sua avaliação do texto final?
A reforma traduz um momento histórico, muito positivo, graças à adoção de um tributo simples, o IVA, que já foi testado no mundo inteiro. Destaco, sobretudo, a simplificação do sistema tributário. O problema é que a reforma não se limitou a reformular a tributação do consumo no Brasil, que era a sua principal missão.
Por quê?
Porque foram criados tributos que nada têm a ver com a taxação do consumo. Um exemplo é a criação de um tributo sobre a extração de recursos minerais, pretensamente incidente até sobre as exportações. Além disso, foi aprovada a constitucionalização de fundos que só existiam no âmbito dos estados. Agora, estão na Constituição e vão vigorar até 2043. Infelizmente, o Congresso acabou mantendo o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) sob a lógica da preservação de direitos da Zona Franca de Manaus (ZFM). Os penduricalhos que vieram com a reforma são muito ruins.
Por que você condena a adoção do imposto sobre exploração mineral?
Esse dispositivo veio da compreensão de que os estados onde há exploração de recursos minerais devem ser compensados. Na minha opinião, ainda que os estados mereçam uma compensação, é preciso lembrar que a extração de recursos minerais já é amplamente onerada – são cobrados os royalties de petróleo e a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral), criada pela Constituição de 1988 para remunerar a União, estados e municípios pela utilização econômica de recursos minerais em seus respectivos territórios. A alíquota hoje varia de 1% a 3,5% e incide sobre a receita bruta. Além disso, vários estados já cobram taxas sobre a atividade mineral.
O novo tributo onera as exportações desses produtos?
Há uma pretensão por parte dos estados de que esse imposto tribute as exportações, violando um princípio do comércio internacional segundo o qual não se exportam tributos. E veja, esses temas não têm nada a ver com a reforma da tributação do consumo.
Por que você condena a inclusão na Constituição dos fundos criados por Estados para taxar empresas beneficiárias de incentivos fiscais?
Premidos pelos impactos no caixa de incentivos fiscais que eles mesmos concederam no passado para atrair investimentos, 17 estados criaram esses fundos para obrigar as empresas a pagarem “contribuições”, sob pena de perderem os estímulos concedidos no passado. Vários contribuintes entraram na Justiça alegando que esses fundos são inconstitucionais. A reforma, então, constitucionalizou os fundos e a Câmara estendeu sua existência até 2043, sendo que o prazo para a extinção do próprio ICMS — e consequentemente dos incentivos — é 2033. É uma insensatez e um avanço desmedido no bolso do contribuinte.
Você desaprova também o tratamento dado pela reforma à Zona Franca de Manaus. Por quê?
Já que o IPI deixaria de existir após a reforma, o que vinha sendo discutido era a cobrança da Cide. No fim, ficou decidido o seguinte: para que a ZFM mantenha o seu dito diferencial de tributação, fica mantida a cobrança do IPI para as empresas que competem com indústrias localizadas na Zona Franca. A reforma extingue o IPI, mas, se eu e você abrirmos uma fábrica de bicicleta no Rio, nós vamos pagar IPI porque já existe uma fábrica de bicicleta na ZFM. Isso significa que o meu plano de negócios será impactado por uma decisão empresarial do meu concorrente. É evidente que o vetor de preservação da ZFM poderia ser atingido de uma forma mais simples.
De que maneira?
Uma alternativa a esse modelo seria a União baixar a CBS [a parte do IVA que ficará com o governo federal] para as empresas instaladas na ZFM. Isso não alteraria os preços cobrados fora da ZFM, mantendo, todavia, o diferencial competitivo para as indústrias que lá estão.
No Brasil, a tributação do consumo é muito maior que a da renda, e isso penaliza os mais pobres. As alíquotas previstas para o IVA são extremamente altas quando comparadas a padrões internacionais. A reforma não tende a aprofundar a regressividade do sistema tributário?
Os grandes “gaps” da tributação no Brasil estão na tributação da renda. Nossa carga tributária equivale a 34,2% do PIB, o mesmo patamar médio dos países da OCDE (34,1% do PIB). Mas,a participação dos impostos sobre a renda na arrecadação total é bem distinta — no Brasil é de apenas 21%, enquanto na OCDE é de 34,1%. Já os impostos sobre consumo respondem por 49,7% da arrecadação total brasileira, ante 32,4% na média da OCDE. Em primeiro lugar, acho que devíamos ter feito a reforma da taxação da renda, e só depois a do consumo. Mas eu tenho um grande receio…
Qual?
De que o aumento da tributação do consumo torne o nosso sistema mais regressivo. As alíquotas do IVA serão muito altas. Fala-se em neutralidade em relação à atual carga tributária, mas não existe uma salvaguarda [de redução ou de manutenção de impostos] para a eventualidade de a carga aumentar após a reforma. Um ponto importante é que o IVA será um imposto único, mas com três alíquotas: uma municipal, uma estadual e outra federal. Cada ente poderá fixar sua alíquota livremente. Haverá uma alíquota de referência para, no momento de transição, assegurar a manutenção da carga atual. No minuto seguinte à transição, cada ente poderá fixar sua alíquota. A manutenção da carga pode até estar nos corações e mentes das pessoas que desenharam a reforma. Mas, hoje, esse “compromisso” está apenas no campo das boas intenções.
Qual é a sua expectativa em relação ao “minuto seguinte”?
Tenho receio de que se aproveite o momento conturbado de mudança para se promover aumento de carga. Digo isso por tudo o que a gente tem visto e, sobretudo, pela voracidade arrecadatória do Governo. Os governadores já estão aumentando o ICMS para chegarem com alíquotas maiores na transição. O ministro da Fazenda, por sua vez, não tem outro assunto senão o aumento de carga.
Das projeções feitas sobre a carga tributária, qual você considera mais provável?
Será possível fazer projeções confiáveis somente após a definição da disciplina dos novos tributos pelas leis complementares, que sequer foram propostas. Os cenários de arrecadação apresentados ao Senado são falhos porque há inúmeros setores cuja tributação será definida por lei complementar.
Que setores?
Por exemplo, bancos, seguradoras e o setor imobiliário. Portanto, não há como simular a carga hoje. As simulações não levaram em consideração também a arrecadação do IPI referente à Zona Franca.
De que forma a substituição do PIS, da Cofins e do IPI pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e a do ICMS e do ISS pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) simplificará a tributação?
Simplifica muito porque o IVA só tributa o valor agregado das operações. Com isso, acaba-se com duas mazelas do sistema tributário brasileiro. O fim de uma delas permitirá saber onde o imposto incide em cada operação. Não importa se é serviço, se é mercadoria. É um imposto só. Ao mesmo tempo, tudo o que é pago nas etapas anteriores gera crédito. Assim, acaba-se com a segunda mazela, que é a discussão sobre o que gera crédito e o que não gera. São evoluções relevantes. Além disso, o sistema será mais transparente quanto à carga tributária total incidente sobre o consumo. Não haverá “tributo embutido” no preço.
Pode citar um exemplo relacionado ao atual sistema de crédito tributário?
Para se ter uma ideia, existe hoje uma compreensão jurisprudencial, segundo a qual, para gerar créditos de PIS e Cofins, a despesa da empresa tem que ser essencial. Veja que discussão bizantina. Para uma montadora de veículos, fazer propaganda é essencial? Entendo que sim, senão ela não vende seus automóveis. Fazer a limpeza da sede da empresa não gera uma despesa necessária? Regras como essa incentivaram a judicialização e, por isso, há um contencioso gigantesco. Isso vai acabar porque, no novo modelo, tudo dá crédito.
No Brasil, muitas vezes a simplificação prevista em lei é anulada na execução pela burocracia. Por que agora pode ser diferente?
Por duas razões. Na essência, teremos um tributo só, incidente sobre todas as operações. E todas as despesas efetuadas pelas empresas passarão a gerar crédito.
Tradicionalmente, empresas e cidadãos não conseguem reaver créditos tributários…
Agora, o crédito será automático. O contribuinte efetua a aquisição de um insumo a ser usado na produção de uma mercadoria. Automaticamente, ele já recebe um crédito. O verdadeiro desafio passa a ser a gestão e devolução dos créditos. Haverá um modelo de gestão da arrecadação por meio de um comitê constituído por representantes de estados e municípios, responsável por arrecadar os tributos e restituir os créditos aos contribuintes. Tem tudo para dar certo, porém, ainda não foi testado. Neste ponto, não há margem para erro sob pena de implodir a reforma.
Essa mudança, além da previsão de que o IVA não será cumulativo, pode resultar em redução de carga tributária?
A cobrança desses impostos sobre consumo e faturamento era cumulativa e, agora, não será mais. Mas, embora a mudança seja ótima para o dia a dia das empresas, devido às alíquotas projetadas, acho que não resultará em redução da carga. Nas palavras dos idealizadores da proposta, capitaneada por Bernard Appy [secretário Extraordinário da Reforma Tributária], a reforma busca simplificar o Sistema Tributário Nacional, não reduzir a carga tributária.
Como você analisa o modelo de transição do regime tributário atual para o novo?
Ao contrário do que foi prometido durante todo o processo de discussão da reforma, de que a transição seria feita em dez anos, isso não vingou. Agora, teremos uma transição abrupta no caso da União, de apenas um ano. No caso dos Estados, a transição levará quatro anos. O próprio Bernard Appy , o mentor da reforma, previa que, se a transição não se desse em 10 anos, haveria muita empresa quebrando. Acredito que ele tinha razão.
Quais as consequências disso?
No caso da União, a CBS (antes, PIS/ Cofins) passará, de um ano para o outro, de 3,65% ou 9,25% para 12%. Aí, chega 2028 e começa a transição estadual e municipal. Em 2029, haverá a arrecadação do ICMS e do ISS, mais a do IBS [parte dos estados no IVA] proporcional. É praticamente impossível que o novo sistema tributário seja neutro em relação ao atual.
Como você vê a eliminação dos atuais benefícios locais e regimes diferenciados de tributação?
Levando em conta a quantidade de regimes diferenciados e regras específicas que temos hoje, a simplificação por meio da unificação de normas é muito positiva e deverá reduzir o contencioso, a guerra fiscal e as inúmeras discussões judiciais sobre a possibilidade de enquadramento de determinada atividade em um regime X ou Y.
Por outro lado, estados e municípios estão habituados a utilizarem benefícios fiscais como instrumento de atração de investimentos e criação de empregos. Os entes federativos terão de ser criativos e utilizar os recursos dos fundos regionais criados pela Reforma para criarem novos atrativos para empresas e negócios, senão as indústrias tenderão a se estabelecer apenas nos mercados mais populosos, com mais consumidores.
E como vê a afirmação de que a reforma trouxe exceções demasiadas ao regime geral, com muitas hipóteses de alíquotas reduzidas ou regimes específicos?
Sempre fui contrário ao discurso da “alíquota única, sem exceções”. Ainda que a simplificação seja um objetivo a ser almejado, não podemos cair no extremo de termos uma única alíquota e uma única regra para todas as operações indistintamente. Dezenas de países europeus que aplicam o IVA têm regras de tributação reduzida ou diferenciadas para determinadas atividades, seja por sua essencialidade, seja por questões estratégicas, como promover o desenvolvimento de algum setor ou reduzir a dependência de importações. A Alemanha tem 3 alíquotas diferentes, assim como Portugal. Já Espanha, Suíça, Reino Unido e França têm 4 alíquotas, enquanto a Itália trabalha com 5 alíquotas diferenciadas.
Vejo como negativo o fato de a Câmara ter adotado o discurso de “caça às bruxas” e, por isso, ter suprimido diversos regimes diferenciados, sob o mero argumento aritmético de que haveria demasiadas exceções, sem qualquer base comparativa para essa conclusão.
Por quê?
Porque isso levou à exclusão de setores importantes, que mereceriam um tratamento diferenciado, como é o caso do saneamento, de gestão de resíduos e de reciclagem (economia circular), tão importantes para fundamentar o discurso sustentável que permeou os debates da reforma. Infelizmente, a Câmara preferiu privilegiar a tese da “quantidade de exceções” em detrimento do meio ambiente. Prova mais contundente disso é a ausência de qualquer regra fiscal de incentivo aos créditos de carbono.
O que mais faltou à reforma, na sua opinião?
Esperávamos uma regra mais audaciosa em relação ao tratamento do capex, que garantisse efetiva desoneração da aquisição de bens de capital. Bernard Appy sempre disse que o intuito da reforma era o de não tributar investimentos, mas a PEC relegou à lei complementar a definição sobre o tema, havendo sempre o risco de que o legislador tributário coloque obstáculos a essa desoneração. Por fim, há ainda a questão do suposto teto das alíquotas do IVA.
Qual é o problema neste caso?
Na verdade, esse teto não impõe qualquer limitação, já que os entes federativos continuam livres para fixar as alíquotas no valor que bem entenderem. A tal “alíquota de referência” do Senado ficou só para inglês ver, e não há sanção alguma para os entes que ultrapassarem tal limite.
Do lado positivo, o que o senhor vê de mais relevante, além da criação do IVA?
Destaco o fim da regra que vinculava a distribuição do IBS à arrecadação futura dos atuais tributos. Nos últimos meses, a maioria dos governadores editou leis que aumentaram o ICMS sob o argumento de que estariam protegendo seus estados dos efeitos da reforma tributária. Com o fim dessa regra, aguardamos que essas majorações sejam revistas imediatamente pelos nossos governadores. Há outras inovações da PEC 45 que merecem elogios, especialmente por tratarem de ideias modernas, com potencial de simplificação e de justiça tributária.
Quais são as inovações?
A primeira diz respeito à implementação do “split payment”, um sistema por meio do qual, ao se adquirir um bem ou serviço, o tributo será automaticamente recolhido e o restante do valor pago vai para o vendedor ou fornecedor.
Hoje não é assim?
Não! Hoje, o valor da compra (produto + tributo) vai para o vendedor, que posteriormente deve transferi-lo ao Fisco. Com essa automatização do recolhimento, teríamos a redução de obrigações acessórias e menor burocracia tributária. E seria um tiro de morte na sonegação. Se efetivamente acontecer, será fantástico. Outro acerto é o “cashback”.
Do que trata essa novidade?
Consiste na devolução, em dinheiro, à população de baixa renda, do tributo pago na aquisição de determinados bens e serviços. A previsão de uma modalidade de subsídio financeiro é sempre melhor do que um subsídio tributário e pode ser melhor destinada à população que efetivamente necessita dos recursos. É claro que o tema exige uma boa regulamentação, para que alcance seu efetivo potencial e não demande maiores obrigações acessórias, burocracia ou a utilização indevida desse subsídio por pessoas que não estejam enquadradas como beneficiárias do regime.