Reza a lenda que JP Morgan Jr. saiu ileso do crash de 29 graças a seu engraxate. Quando soube que o rapaz estava comprando ações, viu que era hora de vender.

No período de alta que antecedeu o crash da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em junho de 1971, com a economia crescendo mais de 10% e o investimento em ações altamente concentrado nas mãos de pessoas físicas, nenhum engraxate alertou Mauricio Marcello, o dono da M. Marcello Leite Barbosa, a maior corretora do Brasil na época.

A Marcello não apenas sofreu um baque – estava altamente alavancada no mercado a termo – como em seguida foi responsabilizada pelo governo militar por provocar a bolha.

Até hoje, não se sabe ao certo o que levou a corretora a sofrer intervenção do Banco Central após o crash de 71, mas “Os Leite Barbosa: a saga da corretora que revolucionou o mercado”, recém lançado pelo jornalista George Vidor, apresenta algumas hipóteses.

A Faria Lima de hoje tem origem em duas árvores genealógicas:  a Marcello e o Garantia, ambas instituições fundadas no Rio. Segundo o livro de Vidor, na Marcello começaram nomes como Marcel Telles, Salvatore Alberto Cacciola, Fabio Nahoum e Marcio Noronha, que dali partiram para fundar bancos de investimento como o Libra, Multiplic, Marka, Vetor e Omega – todos já desaparecidos. (O livro também traz uma genealogia das corretoras cariocas que surgiram a partir da Marcello.)

Neto de fazendeiros cearenses, Mauricio Marcello, que hoje teria 100 anos, foi tentar a sorte no Rio ainda criança, junto com o irmão, João Alberto, após a morte prematura do pai.  

Quando a Marcello surgiu, no início dos anos 50, praticamente só havia operações de câmbio, associadas à exportação de café. No início, Marcello prosperou negociando letras de câmbio, mas enxergava que o desenvolvimento do mercado acionário – o “capitalismo do povo” – era o futuro.

Ao volante de seu Oldsmobile conversível, sonhava em ser Merrill, Lynch ou Salomon Brothers. Seu filho Mauricio – amante de festas e cujo estilo de vida, jura Vidor, deu origem à expressão mauricinho – fez estágio na Salomon em 1965 e voltou inspirado para criar uma mesa de ‘open market’. Lançada no ano seguinte, a mesa de ‘open’ viria a se tornar uma das principais fontes de riqueza das corretoras nacionais, principalmente graças à negociação de ORTNs (títulos corrigidos pela inflação, equivalentes às NTN-Bs de hoje, que rolavam a cada vez maior dívida nacional).

No início dos anos 60, o entusiasmo de Marcello com o mercado de capitais era compartilhado pela equipe econômica: Octavio Gouvêa de Bulhões na Fazenda e Roberto Campos no Planejamento.

A dupla estimulou a compra de ações com dedução de IR e, em 1965, a Lei de Mercado de Capitais sacramentou a figura das sociedades corretoras como intermediadores da compra e venda de ações.

Com o novo arcabouço institucional, o número de empresas listadas só na Bolsa de Valores do Rio, a maior na época, saltou de 26 em 1967 para quase 100 em 1971.

A Marcello liderou vários IPOs e block trades, entre eles o da Unipar (controlada por Alberto Soares de Sampaio e não pelos Moreira Salles, como diz o livro), Café Solúvel Brasília e Siderúrgica Riograndense. Foi também pioneira na criação de um departamento técnico para analisar balanços de empresas, e montou um fundo de investimento em ações para pequenos poupadores, com aportes mensais.

No auge, a M. Marcello chegou a ter 1,4 mil funcionários, 58 mil clientes cadastrados e 15 lojas de rua no Rio, São Paulo, Ceará, Minas, Bahia, Paraná e Brasília.

A formação da bolha era palpável.

Em tempos pré-CVM, o mercado vivia de boatos. Insiders trafegavam impunemente. Um diretor da Marcello assinava uma coluna com recomendação de compra de ações em um jornal do irmão de Marcello – algo impensável nos dias de hoje.

Marcello promovia palestras e distribuía pastinhas cor de rosa para atrair as mulheres para a Bolsa. Beldades da sociedade carioca eram contratadas para vender cotas de fundos: eram as ‘marcelletes’. O esforço de vendas contava ainda com campanhas publicitárias de apelo sensual: “Você já apresentou sua mulher ao Marcello?”, dizia uma delas.

A demanda por IPOs era insaciável, e com a oferta muito aquém da demanda, o índice da Bolsa do Rio subiu mais de 400% do início de 1970 a junho de 1971. Ofereciam-se como “grandes oportunidades” papéis para lá de duvidosos. Foi nesta época que surgiu a piada sobre a ‘Merposa’, um IPO ‘quente’ cujo nome significava “Merda em pó S.A.”  Os investidores engoliam qualquer coisa.

A euforia contagiou também os militares; elite da época, eles participavam do mercado como investidores e também como gestores. Em 1967, quando Delfim Netto tomou as rédeas da economia, a BVRJ passou a ser comandada por um coronel: Hugo Coelho.

O boom das ações começou a secar o funding das financeiras, que captavam recursos de poupadores por meio da venda de letras de câmbio e eram a grande fonte de financiamento do setor produtivo.  O fim estava próximo.

Rumores sobre a fragilidade na custódia das corretoras – não havia custódia centralizada, nem computador, o que dava ampla margem para desvios – levaram o coronel Coelho a apertar o cerco, aumentando a fiscalização.

O mercado, dizia o coronel, estava “histérico e irracional”. Era preciso esfriá-lo. A Bolsa do Rio passou a adotar ‘circuit breakers’ e decretar feriados extemporâneos, entre outras restrições que acabaram por estourar a bolha. Mais de uma década passaria antes das ações voltarem a subir.

No crash, a Marcello estava alavancada em 30 vezes o seu patrimônio – só depois de 1975 seriam estabelecidos limites de alavancagem. Clientes que receberam crédito para comprar ações não assumiram as dívidas e ficaram inadimplentes. Quem perdeu dinheiro pôs a culpa na corretora.

Entrevistado para o livro, Jorge Paulo Lemann atribui a derrocada da Marcello às fragilidades na custódia. Ernane Galvêas, que estava à frente do BC na época, adiciona outro elemento: retaliação dos militares por críticas à política econômica.

A “intervenção branca” do BC na corretora aconteceu logo após uma desavença com Delfim.

Demonstrando talvez uma certa falta de sensibilidade com o período, Marcello vai a Brasília se queixar com o ministro de que o coronel Coelho estaria prevaricando, favorecendo uma corretora concorrente. Dá ainda uma entrevista à revista Forbes nos EUA – título: “The Generals are Investors Too” – que repercute mal no governo. Mais ou menos na mesma época, é destratado em público por Delfim e forçado a renunciar como chairman da Bolsa.

Marcello morreu em 1977, aos 59 anos. Outras bolhas surgiriam, variações sobre o mesmo tema.

A história é fascinante, mas o livro tem um defeito de origem que acomete a maior parte das biografias empresariais do país: ter sido encomendado por um herdeiro. No caso, Antonia Leite Barbosa, neta de Marcello e autora da Agenda Carioca, badalado guia de programação da cidade. A família sofreu e pagou caro nos anos que se seguiram à intervenção.
 
Baseado em depoimentos que por vezes versam sobre os mesmos episódios, o livro se perde em idas e vindas. Fazem falta uma cronologia e um índice onomástico. Mas talvez o maior defeito tenha sido não insistir em ouvir Delfim Netto, o único personagem ainda vivo dessa história e que poderia esclarecer com propriedade as reais motivações da intervenção. O autor até tentou, mas diz que não foi possível “por problemas de saúde e de agenda”.
 
Na foto acima, de pé: Marcello Leite Barbosa (à esquerda), Salvatore Cacciola (à direita).  Sentados: Luciano Coimbra e Rivadávia Couto (da esquerda para a direita).