No começo de 1999, eu já tinha mais de 22 anos de acompanhamento dos dados fiscais e acompanhava com muita apreensão a desvalorização cambial que estava em curso naqueles meses iniciais do ano.
A crise eventualmente seria superada, mas o “ponto de virada” na percepção de quem acompanhava de perto o quadro fiscal foi a divulgação de um documento, por parte das autoridades da época, que mostrava detalhadamente como o Governo vislumbrava a situação fiscal nos anos de 1999 a 2002.
No documento, havia uma tabela que detalhava receitas e despesas, mostrando com precisão quanto o Governo esperava arrecadar e como aqueles recursos seriam gastos com despesas com pessoal, benefícios previdenciários, seguro-desemprego, etc. Ao ler esses números, célula por célula, hipótese por hipótese, linha por linha, quem conhecia do assunto percebeu: “Esse pessoal sabe o que está fazendo.”
E o mercado foi se convencendo.
Depois, mês a mês, com a paciência budista de Pedro Malan e a eficiência daquelas equipes fantásticas da Fazenda e do Planejamento, o Governo foi mostrando resultados fiscais consistentes mês a mês – “entregando”, dir-se-ia hoje – e lá para o meio do ano a coisa virou: o que estava claro para os especialistas nos primeiros meses do ano – que a crise seria vencida – começou a ficar evidente para o grande público.
Corte para 2023. No dia 22 de março, o Governo divulgou o primeiro relatório de avaliação bimestral de receitas e despesas. Ali havia uma previsão de receita líquida de R$ 1,915 bilhão e uma despesa prevista de R$ 2,023 bilhões. Um déficit primário, portanto, de R$ 108 bilhões, da ordem de 1% do PIB.
Oito dias depois – atenção, leitor: oito dias, não oito meses – o mesmo Governo divulga seu famoso “arcabouço fiscal”, e nele consta um déficit para 2023 de … 0,5% do PIB.
O que aconteceu em uma semana que possa ter cortado mais de R$ 50 bilhões de déficit sem que, entre o dia 22 e o dia 30, nada de mirabolante tenha se passado na economia?
Voltemos a 1999. Quando se compara o resultado daquele ano com o de 1998, conclui-se que:
- O resultado primário melhorou 2,84% do PIB, dos quais 1,58% do PIB decorreram de melhoras do Governo Central;
- Neste caso, o aumento da receita líquida respondeu por uma melhora de 0,84% do PIB, sendo o restante dividido entre cortes de gastos e o efeito não captado, na época associado à rubrica de “discrepância estatística”, ainda relevante e com o passar dos anos sendo praticamente zerada com o aprimoramento das estatísticas; e
- Na despesa, destacou-se a redução de 0,52% do PIB da rubrica “outras despesas de custeio e capital” (exceto pessoal e INSS).
Corte novamente para 2023 e os próximos anos. O que podemos esperar, tendo esse marco conceitual como referência? Ou seja, qual será a trajetória esperada da receita e da despesa, ano a ano, em percentual do PIB?
Aqui é necessário esclarecer o óbvio: sugere-se deixar de utilizar o orçamento de 2023 – uma peça rigorosamente inútil, porque ficcional – e sim fazer as comparações com os dados observados de 2022. Garanto ao leitor que em janeiro ninguém lembrará mais do orçamento de 2023 e todos irão comparar os dados de 2023 com os de 2022. E em 2022 tivemos o seguinte quadro no Governo Central, em % do PIB:
Receita líquida: 18,72
Gasto: 18,17
Pessoal: 3,41
INSS: 8,04
Outras despesas: 6,72
Superávit primário: 0,55
Vamos deixar claro o seguinte, portanto: em 2023 haverá uma piora fiscal – e substancial. E não uma melhora.
Imagine o leitor uma empresa que, ao planejar sua despesa anual de 2023 em janeiro, tendo gasto R$ 10 milhões em 2022, “pretende” originalmente gastar R$ 12 milhões e depois, refazendo as contas, vê que pode gastar “apenas” R$ 11 milhões.
Ora, ela está gastando R$ 1 milhão a mais – que em 2022 – e não R$ 1 milhão a menos – que em 2023. Neste último caso, ela está apenas “cortando vento.”
Recapitulemos, então, os números. O Governo há uma semana disse que o resultado do déficit primário do Governo Central de 2023 seria de 1% do PIB, e agora está acenando com um superávit de 1% do PIB para 2026. Um belo ajuste de 2% do PIB.
Primeira observação: se isso se concretizar, o ajuste em relação a 2022 seria de menos de 0,5% do PIB. Segunda observação: esse superávit primário de 2026 decorreria de que hipótese de receita líquida e de despesa em relação ao PIB?
Entre 2021 e 2022, quem acompanha as contas sabe que a receita do Imposto de Renda – leia-se: IRPJ da Petrobras e IR na fonte sobre aplicações financeiras – aumentou 0,90% do PIB, a de dividendos, 0,39% do PIB, a de concessões, 0,36% do PIB e a de exploração de recursos naturais, 0,28% do PIB, somando um plus de 1,93% do PIB.
E olhando pra frente, esse analista vê um lucro menor da Petrobras gerando menos impostos, uma Selic menor reduzindo a arrecadação do IR na fonte sobre aplicações financeiras, menos dividendos pagos pelas estatais, menos concessões e menos royalties.
É aqui que a porca torce o rabo. Se i) o Governo pretende melhorar razoavelmente o resultado primário; ii) o gasto, clara e assumidamente, vai aumentar, a única explicação possível para fechar a conta é ter um aumento significativo da receita.
A “pergunta do bilhão” é: Como? Quanto? Onde? Do IR? Do IPI? Da COFINS?
A coisa, porém, não para por aí. Pelo lado do gasto, tudo indica que:
i) o salário mínimo terá tendência de alta;
ii) a despesa com saúde e educação vai aumentar;
iii) pelo ponto (i), as despesas com INSS, LOAS e FAT vão aumentar;
iv) o investimento vai aumentar; e
v) o gasto com pessoal não vai cair.
A outra pergunta que não quer calar é: se o PIB não tiver nenhum desempenho brilhante e no Governo Lula não crescer mais do que 2% a.a. na média dos 4 anos, para onde irá a relação Gasto/PIB?
Um aviso aos navegantes: o gasto primário cresceu mais de 3% em termos reais em 2022, e o próprio Governo prevê para 2022 um crescimento real da ordem de 6% em 2023. Ou seja, estamos falando de um agregado que terá crescido quase 10% em termos reais em 2 anos. E muita gente falando em “arrocho”…
Para concluir, lembremos que o déficit público será de 7 a 8% do PIB este ano, e que deveríamos ter como objetivo reduzir isso a um patamar da ordem de 3% do PIB daqui a alguns anos; e que a taxa real de 30 anos – indicador de (des)confiança no longo prazo – é de mais de 6% e deveríamos aspirar a reduzi-la para algo em torno de 4%, idealmente, durante o atual Governo.
Qual é o roadmap, então? Como chegar lá? Como esse esforço será distribuído entre o Governo Central e Estados e Municípios? Quanto caberá à receita e quanto à despesa? O Governo tem que mostrar os números para ser convincente. No dia 30, não mostrou. Esperamos que, ao apresentar a LDO, o faça. Aguardemos, então.
Fabio Giambiagi é pesquisador da FGV/IBRE.