“¡Borom bom bom, borom bom bom, la Recoleta es de Perón!” 

Entoando o refrão acima, com a empolgação característica das torcidas organizadas na Bombonera, os apoiadores de Cristina Fernández de Kirchner fazem desde o início da semana uma vigília barulhenta na porta do prédio onde mora a atual vice-presidente do país, na Recoleta. Batem bumbos, cantam gritos de guerras e soltam rojões – alguns atingiram apartamentos da vizinhança e aterrorizaram os moradores.

No sábado, os manifestantes entraram em choque com os policiais chamados para dissipar a aglomeração. Pelo menos 12 pessoas ficaram feridas, a maioria agentes das forças públicas, no que o secretário de redação do La Nación chamou de “la hora más oscura de Cristina Kirchner.”

10101 8c60e14b 9511 0000 0024 06cd3ba57932O país entrou em ebulição política – mais uma vez – depois que o Ministério Público pediu, na segunda-feira passada, 12 anos de prisão para CFK no processo no qual a ex-presidente é acusada de ter comandado um esquema de corrupção nos anos em que ocupou a Presidência (2007-2015), sucedendo o marido, Néstor Kirchner, morto em 2010.

Os episódios na Argentina guardam paralelos óbvios com o Brasil e ressaltam como o populismo personalista na política – seja nos EUA ou na Argentina, na esquerda ou na direita – insiste em sabotar a democracia e suas instituições em favor de grupos que não aceitam a regra do jogo.

O promotor do caso contra Cristina, Diego Luciani, também quer a devolução de 5,3 bilhões de pesos (o equivalente a R$ 200 milhões) aos cofres públicos, e que CFK seja proibida de exercer cargos públicos. Outras 12 pessoas foram denunciadas no mesmo processo, entre elas o empresário Lázaro Báez, agraciado com contratos que dispensaram licitações.

Segundo a denúncia, em seus anos no poder os Kirchner beneficiaram Báez e outros empresários aliados em troca de favores e propinas.

Uma das principais evidências da corrupção seriam os empreendimentos hoteleiros dos Kirchner em Santa Cruz, na Patagônia. Néstor foi governador da província e de lá se projetou nacionalmente ao lado da esposa.

Em 2007, no último ano do governo de Néstor, o casal abriu as portas do exclusivo hotel Les Sauces, na cidadezinha de El Calafate. Anos depois, os Kirchner inauguraram mais dois hotéis na mesma região, além de terem construído uma residência de veraneio nas imediações.

Para o Ministério Público, os empreendimentos são indícios contundentes de enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. Por exemplo, um dos hotéis informava que estava sempre lotado, apesar de testemunhas relatarem que não havia hóspede nenhum na maior parte dos quartos. Os empresários amigos pagam as diárias como forma de repassar dinheiro para os Kirchner.

Báez era um modesto bancário de Santa Cruz. Nos anos do governo Kirchner na província, começou a prosperar e se tornou um magnata no ramo das obras públicas. Entre 2003 e 2015, ganhou 80% dos contratos para projetos de construção e manutenção de rodovias na província.

Uma dezena de outros processos foram abertos contra CFK, alguns deles ainda em andamento. A denúncia apresentada agora é a primeira que irá a julgamento. O processo deverá se arrastar ainda por diversos anos, porque, mesmo condenada, a vice-presidente certamente recorrerá a instâncias superiores.

Sua linha de defesa já foi definida há tempos: tudo não passa de uma perseguição comandada por promotores e juízes leais a seus opositores, entre eles o ex-presidente Mauricio Macri.

Logo após a denúncia do Ministério Público vir a público, a diplomacia argentina foi mobilizada para sair em defesa da vice-presidente. Na quarta-feira, um grupo de presidentes – todos de esquerda – soltou uma nota conjunta de repúdio à denúncia. Assinaram a carta, além do próprio Alberto Fernández, os presidentes do México, Andrés Manuel López Obrador, Luiz Arce, da Bolívia, e o recém-empossado Gustavo Petro, da Colômbia.

“Manifestamos nosso repúdio absoluto à perseguição judicial injustificável que vem sofrendo a atual vice-presidente Cristina Kirchner,” diz o documento. “A perseguição tem como objetivo tirar Cristina Fernández de Kirchner da vida pública, política e eleitoral, assim como sepultar os valores e ideais que representa, com o objetivo final de implementar um modelo neoliberal.”

(Não se sabe se o chileno Gabriel Boric foi convidado, ou se preferiu manter distância e seguir o princípio diplomático de não se imiscuir em assuntos internos de outros países.)

O tom da carta dos presidentes foi similar ao de outra, divulgada por 14 embaixadores argentinos ao redor do mundo – todos indicados politicamente – apoiando CFK e repudiando “categoricamente a perseguição midiático-judicial para eliminar adversários políticos”.

De acordo com a imprensa local, trata-se de algo “inédito” o uso da diplomacia oficial para atacar o Judiciário.

Ontem, após os confrontos dos manifestantes com a polícia, já eram quase 23 horas quando Cristina apareceu na porta de seu prédio para pedir que os apoiadores deixassem o local, não sem antes discursar contra aqueles que têm ódio da “alegria e do amor dos peronistas”.

Qual será o efeito da nova crise sobre as combalidas finanças do país?

Ainda não existe uma resposta clara, mas, com Cristina nas cordas, o novo ministro da Economia, Sergio Massa, poderá sofrer menos com ataques de bastidores do fogo amigo kirchnerista e ganhar amplitude política para seguir seu plano de estabilização.

Na noite do sábado, enquanto Cristina emulava Evita Perón congraçando-se com apoiadores na Recoleta, Massa tinha um “jantar de trabalho” com embaixadores do G7. No próximo mês, o ministro parte para Washington, onde manterá encontros com representantes do FMI e do Clube de Paris.

A Argentina precisa desesperadamente reforçar suas reservas internacionais, exterminadas pelas intervenções cambiais feitas nos últimos meses na tentativa de evitar uma desvalorização ainda mais acentuada do peso e, dessa maneira, aliviar a espiral inflacionária.

As reservas líquidas estão ao redor de US$ 1 bilhão, um valor irrisório e insuficiente para o país honrar os pagamentos de seus compromissos externos. Não por outro motivo, uma lista crescente de mercadorias passou a ter a importação controlada.

Tradicional potência na produção de produtos agrícolas e minerais, o país viu suas exportações diminuírem e acumula déficits nas contas externas, entre outros motivos por causa da importação de energia. A falta de eletricidade, obviamente, resulta de anos de manipulações tarifárias.

Borom bom bom, borom bom bom/quando a Argentina se livrará de Perón?

 

RECORDAR É VIVER

Como o Kirchnerismo inflamou a crise argentina