Qual a chance de uma moradora da favela que estudou só até o segundo grau tornar-se uma escritora internacionalmente conhecida?

A trajetória de Carolina Maria de Jesus contraria todas as probabilidades – e só foi possível por um golpe de sorte.

Em 1958, o jornalista Audálio Dantas resolveu passar uns dias em uma favela perto do centro de São Paulo para escrever sobre a vida dos moradores. Andando por lá, notou uma moradora escrevendo em papeis velhos. O encontro mudaria para sempre a vida dos dois.

Na edição de 9 de maio de 1958 da Folha da Noite, foi publicada a história da catadora de lixo, Carolina Maria Jesus. O interesse foi tamanho que outras matérias seguiram, até que, em 1960, seu diário, intitulado Quarto de Despejo, foi publicado. O livro rapidamente virou um best-seller dentro e fora do Brasil (foi traduzido para 13 idiomas), e adaptado para o teatro e a televisão.

Neta de escravos e filha de mãe analfabeta, Carolina nasceu em Sacramento, Minas Gerais. Em 1947, mudou-se para São Paulo e foi morar com os três filhos na favela do Canindé, às margens do Rio Tietê. Carolina começou a escrever a partir de sua dura experiência de vida, mas é sua profunda capacidade de observação e sensibilidade que impressionam.

Com o sucesso do livro, Carolina saiu da favela, comprou uma casa, conheceu políticos e celebridades e viajou o mundo. Nos dois anos seguintes ao lançamento, participou de programas de televisão e rádio, congressos e festivais. Publicou outros livros, mas que não fizeram tanto sucesso. Em 1964, depois de vender sua casa, foi morar num sítio em Parelheiros, a 40 km de São Paulo, onde morreu em 1977 – sem recursos e de certa forma esquecida.

Mesmo com todas as dificuldades por que passou, Carolina nunca parou de escrever.  Além dos diários, deixou peças, romances e poemas. Até o momento foram localizadas quase 6 mil páginas escritas à mão, que se encontram dispersas entre o acervo público de Sacramento, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o Instituto Moreira Salles.

Para organizar o legado de Carolina, a Companhia das Letras está reunindo seus escritos para republicá-los no formato original. Isto porque o livro que o mundo conheceu em 1960 foi resultado de cortes e intervenções feitos pelo jornalista Audálio Dantas, o que incomodava a autora.

Para supervisionar as transcrições e todo trabalho editorial, a Companhia montou um conselho composto pela filha de Carolina e mulheres intelectuais, acadêmicas e escritoras negras – sob o comando da escritora Conceição Evaristo.

É um trabalho que vem sendo feito há dois anos, dividido em três núcleos da vida de Carolina: Quarto de Despejo (o começo de tudo, enquanto morava na favela), Casa de Alvenaria (comprada com os recursos do primeiro livro) e Cadernos do Sítio (onde viveu até morrer).

Para o primeiro conjunto publicado, o Volume 1 e o Volume 2 da Casa de Alvenaria, a editora comissionou um quadro da artista Lucia Laguna para as capas.

Para ampliar o acesso do público à obra de Carolina, o Instituto Moreira Salles preparou uma exposição dedicada à trajetória e produção literária da autora.  Em cartaz em São Paulo até 27 de março, Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros é uma mostra imperdível e inesquecível.

Além de seus manuscritos, matérias da época e frases (foi uma frasista de primeira), a exposição tem ainda obras de artistas contemporâneos de Carolina, como Arthur Bispo do Rosário e Heitor dos Prazeres – juntamente com obras comissionadas especialmente pela curadoria de artistas negros: Antonio Obá, Dalton Paula, Eustáquio Neves, Paulo Nazareth, Rosana Paulino, Silvana Mendes, Sonia Gomes, entre outros.

Na última sala da exposição, está exposto um retrato da escritora comissionado ao pintor Antonio Obá, um dos mais geniais artistas da sua geração. Representado pela Galeria Mendes Wood Dmab, Obá é destaque da Coleção Pinault atualmente em exibição na Bourse de Commerce, em Paris. (A equipe do IMS colocou um banquinho para que todos pudessem apreciar com calma a masterpiece, que também ilustra esta matéria.)

No andar imediatamente abaixo, o IMS organizou simultaneamente uma exposição em torno da escritora Clarice Lispector. Além da admiração mútua e o fato das duas terem a escrita como forma de viver (e de terem morrido no mesmo ano), suas realidades de vida nada tiveram em comum.

Clarice estudou Direito em uma faculdade de elite, publicou seu primeiro livro aos 19 anos e foi festejada pela imprensa e pelo meio intelectual até seu último suspiro.

Carolina não terminou o colégio, publicou seu primeiro livro aos 47 anos e morreu incompreendida e abandonada. Ficou famoso o diálogo das duas escritoras: “Como você escreve elegante”, disse Carolina. “E como você escreve verdadeiro, Carolina!”, disse Clarice.

O pequeno Brasil de Clarice precisa conhecer o grande Brasil de Carolina.