Mais de 30 anos depois do início da sua construção, o trecho central da ferrovia Norte-Sul que vai a leilão na próxima semana está longe de atrair a concorrência que poderia se supor para aquela que é considerada a ‘espinha dorsal’ da malha ferroviária brasileira.
Nas últimas semanas, o governo vem se esforçando para garantir a privatização, que é uma das principais bandeiras para os primeiros 100 dias do governo Bolsonaro. Mas, no setor, não se esperam grandes ágios em relação ao valor de outorga de R$ 1,353 bilhão.
Com questionamentos de players do setor e do Ministério Público sobre o direito de passagem – mecanismo que permite que os trens transitem da malha de uma concessionária para outra –, os players internacionais devem ficar de fora do certame. E a VLI – cujo maior acionista é a Vale – aparece como franca favorita, em meio ao desânimo da Rumo, do grupo Cosan com os valores propostos.
Os chineses chegaram a olhar o ativo, mas desistiram. A russa RZD, que avançou mais na análise do projeto, também deve ficar de fora.
A Norte-Sul não tem acesso direto ao mar. A futura concessionária teria duas opções para escoar as cargas: passar pela Malha Paulista, controlada pela Rumo, no caminho até o Porto de Santos (SP), ou pelas redes da VLI e da Vale em direção ao porto de Itaqui, no Maranhão. (O trecho a ser licitado tem 1537 quilômetros entre Porto Nacional, no Tocantins, e Estrela D’Oeste, em São Paulo.)
“O edital é muito ruim em garantias para o direito de passagem”, diz Bernardo Figueiredo, ex-presidente da ANTT e da Empresa de Planejamento Logístico (EPL), que atua como consultor para os russos. “Estávamos esperando a manifestação da ANTT, mas eles só reforçaram tudo que está no edital”.
As respostas às longas listas de questionamentos sobre o leilão feitas à agência reguladora só saíram na última sexta-feira à noite, menos de duas semanas antes do certame.
O edital garante a passagem de trens da Norte-Sul pelos trilhos das operadoras nos primeiros cinco anos de concessão, que é válida por 30. A partir do sexto ano, no entanto, o espaço teria que ser negociado entre as partes, com a intermediação da própria ANTT.
“Quem vai querer gastar R$ 3 bilhões sem ter a garantia de que sua malha vai conseguir chegar a algum lugar?”, pondera Figueiredo.
Apontada como uma das favoritas, a Rumo também não parece tão animada com o negócio. Qualquer jogador de poker sabe que ninguém sairia proclamando um bid agressivo menos de uma semana antes do leilão – mas Julio Fontana, CEO da Rumo, é claro em afirmar que a empresa não vê espaço para um ágio expressivo.
“Vamos participar, é importante dar essa força para o governo, mas o negócio em si está longe de ser um ótimo negócio e o espaço para ágio é muito baixo”, disse ao Brazil Journal.
Ele afirma que a modelagem de preço prevê volumes superestimados, especialmente para as chamadas cargas gerais, e que o investimento previsto no trecho ficará acima dos R$ 2,8 bilhões previstos pelo governo, especialmente por conta da necessidade de revitalização de trechos e de obras que não foram concluídas pela Valec, a estatal do setor.
Outro problema é que a conexão com a Rumo se daria via Malha Paulista, uma concessão que vence em 2028 e cuja renovação por mais 30 anos está sendo negociada há mais de dois anos, ainda sem conclusão.
O edital prevê que ela só precisa dar direito de passagem se tiver capacidade ociosa. Mas sem a renovação – e os investimentos associados – essa capacidade simplesmente não existe. Já falta capacidade hoje para atender os clientes da própria Rumo. “O ideal era ter a renovação antes do leilão [da Norte-Sul], mas isso não aconteceu”.
A VLI, que tem entre os acionistas a Vale, Brookfield e os japoneses da Mitsui, é tida como a franca favorita, por conta da fácil integração das malhas. A empresa já é a concessionária do trecho do trecho superior da Norte-Sul, que vai de Açailândia (MA) a Porto Nacional (TO).
Procurado, o presidente da VLI, Marcello Spinelli, não quis comentar. Por meio da assessoria de imprensa, a empresa disse que “está avaliando sua participação na licitação”.
O desenho do edital já foi contestado pelo procurador Júlio Marcelo Oliveira, junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), mas foi aprovado pelo órgão. Segundo Oliveira, a forma como foi estabelecido o direito de passagem favorece os players já conectados à malha.
Mas ainda há risco de judicialização. Em entrevista ao Valor, o subprocurador da República Augusto Aras disse que pode levar o certame à Justiça “se alguns pontos cruciais da regulação não forem ajustados pelo Ministério da Infraestrutura”. Ele defende que o direito de passagem seja assegurado pelo período de concessão.
E quer aproveitar para inserir um jabuti: que o preço a ser cobrado do usuário na ferrovia seja o máximo de 60% do frete rodoviário – parecendo ignorar toda a lambança causada pelo tabelamento do frete pós greve dos caminhoneiros.
Em nota, a VLI disse não ver sentido nenhum na argumentação de favorecimento: “O próprio edital prevê que aproximadamente 2/3 das cargas a serem movimentadas pelo trecho a ser licitado serão escoadas pela tramo sul da ferrovia, um trecho que a VLI não opera”. E acrescenta: “o edital determina a capacidade de transporte disponível ao vencedor, assim como o valor máximo que pode ser cobrado pelo direito de passagem”.
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