Quando o assunto é transporte ferroviário, o que separa o Brasil do resto do mundo são meio metro entre dois trilhos, milhares de quilômetros de malha e décadas de conhecimento técnico.
Mas se depender de Luiz Henrique Hungria, os trens brasileiros logo andarão a todo vapor.
Em 1983, quando Hungria, um recém-formado engenheiro mecânico, passou num concurso para fazer manutenção de vagões na antiga Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), o Brasil tinha cerca de 30 mil quilômetros de ferrovias.
Fast forward 34 anos, e ainda temos os mesmos 30 mil quilômetros — pouco mais de um décimo da malha dos Estados Unidos —, quase todos construídos na época do Império e na primeira metade do século XX.
Agora, Hungria colocou todo seu conhecimento — prático e teórico — sobre vagões e locomotivas no primeiro compêndio efetivamente técnico sobre como operar trens de carga no Brasil.
Com 816 páginas, o calhamaço “Segurança operacional de trens de carga: uma literatura de valor” não poderia ter um nome mais apropriado.
O livro reúne equações impenetráveis, fórmulas e memórias de cálculo de um homem com três décadas de experiência prática e apaixonado pelo que faz — num país que frequentemente negligencia o conhecimento científico.
Hungria viu a Malha Sul passar do governo federal para a ALL e, em seguida, para a Rumo, onde hoje trabalha como ‘especialista em tecnologia de equipamentos’ e é uma referência viva para técnicos do setor.
De lá pra cá, os trens se modernizaram, a eficiência melhorou, mas a literatura do setor praticamente parou no dia em que o Presidente Juscelino Kubitschek decidiu que a locomotiva do Brasil seria a rodovia.
“Os livros sempre falavam sobre a parte teórica, de conceito,” diz Hungria. “Quando começava a ficar interessante e chegar na parte específica, sobre como resolver um problema, acabava. Eles não atendiam de forma nenhuma a realidade produtiva.”
Ao longo de sua carreira, Hungria foi confrontado com problemas específicos, para os quais não encontrava resposta.
Por exemplo: alguns trechos da Malha Sul, como o que liga Curitiba ao Porto de Paranaguá, são íngremes e têm rampas descendentes muito maiores do que em outros lugares do mundo. O desafio era calcular como fazer o trem frear da forma mais eficiente, sem perder muito em velocidade no trecho e nem consumir muito combustível. “Pouca gente sabe, mas são os vagões que fazem os trens pararem,” diz o ferroviário.
Nos primórdios da ferrovia, quando as composições ainda eram pequenas, apenas os freios da locomotiva eram suficientes para freá-la. Com o aumento das composições, são os sistemas de freios dos vagões que são capazes de pará-las — e o principal desafio é fazê-los trabalhar em sincronia.
Na falta de uma solução pronta, Hungria criou as suas próprias — todas contidas no livro.
Refém do atraso, após a privatização o Brasil ficou com o espólio do equipamento ferroviário dos Estados Unidos.
No começo dos anos 2000, quando os americanos começaram a usar as locomotivas de corrente alternada – que têm mais aderência, permitindo o uso de menos potência e, portanto, menos combustível —, a ALL começou a importar as locomotivas de corrente contínua, menos eficientes.
“Era o que dava para fazer com os contratos [de carga] que se tinha à época”, diz Hungria.
Mas ao contrário do material rodante, a literatura técnica sobre trens não podia ser totalmente importada. A culpa? Uma jaboticaba: nos Estados Unidos e na maior parte do mundo, a bitola – distância que separa os trilhos dos trens – é de 1,435 metro. No Brasil, a bitola mais comum é menor, de 1 metro, e na Região Sudeste, maior, de 1,6 metro.
“Era mais fácil desenvolver os próprios cálculos do que adaptar as fórmulas americanas, que exigem uma série de ajustes”, diz Hungria.
A carreira do bitolado em cálculos de engenharia ferroviária começou com uma ajuda do destino — que o colocou num dos locais onde eficiência era palavra de ordem mesmo numa estatal já sucateada.
A RFFSA tinha administração centralizada no Rio de Janeiro, e as unidades locais apenas executavam os contratos fechados pela matriz fluminense. Mas no Paraná, onde começou a trabalhar, a rede de usuários era capitaneada pela cooperativa de produtores de soja, que dependia das ferrovias para transportar a carga. “Tinha um pressão grande para ter agilidade no transporte. Mas o investimento era muito baixo e não dava pra fazer tudo que tinha potencial”, diz Hungria.
Os recursos, já minguados, foram secando e alguns anos antes da privatização, em 1997, boa parte do material rodante estava parado.
Nos primeiros anos, a iniciativa privada recuperou o maquinário que estava encostado por falta de investimentos. As locomotivas de corrente alternada – aquelas, que chegaram aos Estados Unidos no começo dos anos 2000 – começaram a desembarcar no Brasil por volta apenas em 2010.
Agora, na operação da Rumo, uma das principais tarefas de Hungria é fazer o milagre da multiplicação da capacidade: fazer os trens transportarem mais carga sem aumentar o comprimento da composição. As linhas férreas têm pátios para parada ao longo do caminho e eles já estão formados para um tamanho específico de trem – normalmente de 1.500 metros. ‘Esticar’ os trens exigiria investimentos pesados na reforma dessas estruturas.
“Para isso, temos vagões mais curtos e pesados”, diz Hungria. “Antes, um vagão com 18 metros de comprimento levava 100 toneladas. Agora, um vagão de 17 metros leva 102 toneladas”. De pouco em pouco, um trem de 1.500 metros consegue transportar 750 toneladas a mais.
O livro traz oito capítulos, que tratam sobre conceitos básicos, dinâmica, estabilidade, via permanente, desbalanceamento de cargas, fator humano e pátios ferroviários, e um CD com planilhas e demonstrativos gráficos dos cálculos criados por Hungria.
A publicação é voltada para quem já atua na área e já sabe quais perguntas procura resolver; para qualquer outro ser humano, é literatura anti-insônia.
“Se, de algum modo, o livro puder ajudar o leitor a tomar melhores decisões técnicas relativas a trens e motivá-lo a fazer questionamentos mais profundos trazendo novas e mais acertadas formulações, o autor terá atingido plenamente seu objetivo”, diz ele na introdução da obra.
A produtividade do País agradece.