Oito meses depois de rejeitar uma nova Constituição cujo texto pendia demais para a esquerda – repleto de direitos insustentáveis do ponto de vista orçamentário – os chilenos agora deram uma estrondosa vitória às forças políticas de direita, que vão comandar a elaboração de um novo texto.
A nova Carta será submetida mais uma vez ao referendo popular, numa votação marcada para dezembro.
Os chilenos foram às urnas ontem para eleger os 51 representantes do Conselho Constitucional, que serão os responsáveis pela redação da segunda versão de uma proposta para substituir a Constituição em vigor, promulgada em 1980, durante a ditadura sanguinária do General Augusto Pinochet.
O Partido Republicano foi o grande vencedor, com 35% dos votos, e terá o maior número de conselheiros: 23 ao todo. Considerado de extrema-direita, o partido é comandado por José Antonio Kast, que perdeu para o esquerdista Gabriel Boric nas eleições presidenciais de 2021.
A chamada “direita tradicional” da coalização Chile Seguro, com políticos conservadores e de centro-direita, ficou em terceiro lugar e indicará 11 conselheiros.
Assim, os partidos mais ao centro e à direita terão 34 dos indicados (67% do total) – uma folgada margem para determinar o conteúdo da próxima Constituição.
A coalizão governista Unidad para Chile, de Boric, ficou com 28% dos votos e terá apenas 16 cadeiras, ficando longe de alcançar o número mínimo de 21 conselheiros que dá poder de veto dentro do conselho. Haverá ainda um representante dos grupos indígenas.
A derrota da esquerda contribuiu para uma valorização dos ativos chilenos. A Bolsa de Santiago subiu 2,34%. Para os analistas, ficou afastado o risco de ser aprovado um texto que não seja market friendly, como era o caso da bastante heterodoxa proposta anterior.
A grande maioria dos eleitores chilenos defende a aprovação de um novo texto constitucional. O texto anterior, fortemente influenciado pela esquerda mais radical e movimentos identitários, foi rejeitado por mais de 60% dos eleitores – um percentual semelhante ao que agora foi conquistado pelos partidos conservadores e de direita.
Do impasse político surgiu o acordo para iniciar o processo de elaboração de uma nova proposta, mas dessa vez limitando o escopo do trabalho.
Os trabalhos vão se centrar em 12 tópicos, eliminando a possibilidade de as propostas tocarem em pontos como reforma agrária, direitos de propriedade, questões de gênero e independência do Banco Central, como acabou ocorrendo na versão anterior.
O Conselho Constitucional de 50 pessoas vai na realidade finalizar um texto que já vem sendo preparado por uma Comissão de Especialistas. Qualquer alteração ou emenda precisa ter ao menos 3/5 de apoio dos conselheiros.
“Esperamos que a nova proposta seja mais centrista e menos controversa do que a primeira tentativa,” escreveu o analista Sergio Armella, da Goldman Sachs. “Ainda assim, em comparação com o texto atual, o novo texto deverá validar uma rede de proteção social mais ampla. Também esperamos menos ruído ao longo do processo, uma vez que as propostas mais radicais à esquerda deverão enfrentar uma oposição expressiva no Conselho eleito.”
Para o BTG, o resultado foi “pró-mercado” e deverá favorecer os ativos chilenos. “Foi um acontecimento importante para a confiança dos investidores, com uma indicação clara de que o modelo econômico atual será mantido,” escreveram os analistas do banco. “As ações deverão reagir de maneira positiva, diante da esperada queda no risco – o que, em nossa avaliação, tem sido um fator relevante impedindo maiores valuations.”
O novo texto deve ser concluído até o início de novembro. No mês seguinte, será submetido ao novo referendo popular.
Na avaliação da consultoria Prospectiva, existem três cenários. O primeiro é a manutenção da atual Constituição, algo sempre defendido pelo Partido Republicano. “Mas isso é improvável, porque a ampla maioria dos chilenos quer uma nova Constituição,” diz o relatório da Prospectiva.
Outra possibilidade seria a concepção de um texto bastante similar ao da Carta em vigor, ganhando a inclusão de artigos apoiados pelo eleitorado mais conservador. O terceiro possível desfecho será a elaboração de um texto mais inclinado à direita, o grupo majoritário no Conselho – mais aí pode ficar comprometida a possibilidade de o texto passar no referendo.
Kast, um conservador católico e frequentemente comparado a Donald Trump e Jair Bolsonaro, sagrou-se o grande vencedor do pleito de domingo. Quando lhe perguntam, por exemplo, sua opinião sobre o golpe de Estado de 1973, ele afirma que “Pinochet fez o que tinha que ser feito”.
Mas a votação confirmou que o país permanece polarizado, com os dois extremos conquistando a maior parte dos votos, enquanto os partidos tradicionais mais ao centro perdem relevância.
Para a esquerda, foi uma derrota dolorosa, tida por alguns com a maior desde a redemocratização. Boric, que saiu vitorioso na eleição por uma margem estreita, agora enfrenta altos índices de rejeição, apesar de ter moderado o discurso depois da vitória.
Recentemente, Boric fez uma reforma ministerial em que ampliou a presença de políticos centristas e diminuiu ainda mais o espaço dos radicais de esquerda. Na economia, sua política tem sido ponderada – com exceções como a nacionalização do lítio – em linha com a tradição local e distante do padrão encontrado nos governos de esquerda na América Latina.
“Olhando para o quadro mais amplo, as vitórias dos presidentes de esquerda na América Latina não foram acompanhadas por maiorias sólidas no Legislativo,” afirma a Prospectiva. “Isso levou a uma situação de estagnação das agendas, impopularidade dos governos e sociedades insatisfeitas. Basta observar o Chile, o Peru e a Colômbia. Não surpreende que as forças de direita estejam capitalizando as falhas e inércia da esquerda.”
Boric ficou marcado pelo desastre cometido pelos constituintes esquerdistas responsáveis pela proposta rejeitada. Seus acenos recentes ao centro não foram suficientes para aumentar seu apoio fora da base.
“A esquerda paga um preço elevado pelas suas irresponsabilidades entre 2019 e 2022,” resumiu no Twitter Michael Reid, o ex-editor da Economist e autor do livro The Forgotten Continent – A History of the New Latin America. “Enquanto se fala de uma nova onda rosa na América Latina, uma virada para a direita já está a caminho – e poderá ser uma direita mais dura extrema em algumas regiões.”