A história da falsa lista que mostrava a Berkshire Hathaway como acionista do IRB não passou de um “grande mal-entendido.”
É o que diz o ex-CFO da companhia, Fernando Passos, que protagonizou o episódio junto ao então CEO do IRB, José Carlos Cardoso.
Cardoso e Passos nunca falaram publicamente sobre o assunto, mas agora deram sua versão à CVM num processo ao qual o Brazil Journal teve acesso.
Em depoimento no ano passado, Passos disse ao regulador que o “grande mal-entendido” começou depois que Cardoso comentou com ele uma conversa que tivera com Ajit Jain, o vice-presidente de operações de seguros da Berkshire.
“Eu imagino que o Ajit Jain teve uma conversa com o Cardoso no sentido de que ele estava aumentando, investindo mais na companhia, mas investindo mais porque ele estava aumentando as nossas linhas de retrocessão. Essa é a linha que eu tenho hoje. E o Cardoso entendeu esse investimento como investimento em ações. Hoje, eu tenho uma visão clara de que houve um grande mal-entendido nessa conversa do Ajit com o Cardoso lá atrás, que acabou gerando um mal-entendido enorme e, aquela coisa que você disse, o mercado muito estressado acaba dando esse tipo de coisa”.
Depois de supostamente ter entendido errado sobre o investimento da Berkshire, Passos pegou a lista de acionistas do IRB e simulou qual seria a participação da Berkshire quando aparecesse uma compra de 28 milhões de ações. (No processo, não fica claro de onde Passos tirou essa quantidade de papéis, mas aparentemente, ele apenas colocou a Berkshire como a terceira maior acionista da empresa, atrás de Bradesco e Itaú.)
Em seguida, Passos encaminhou uma cópia em PDF da lista alterada para a equipe de RI do IRB, além de três conselheiros e do antigo CEO. Na mensagem, Passos escreve: “No meio dessa confusão toda, uma notícia positiva”. Um dos conselheiros responde: “Welcome, Buffett! Abraços e bom descanso.”
Já o ex-CEO Cardoso está dizendo à CVM que foi informado sobre a participação da Berkshire no IRB por essa mensagem, e que não tinha por que desconfiar da informação: “Como que seria inventado isso? Como que alguém podia inventar uma história dessa? Com um nome desses?” disse Cardoso em seu depoimento.
A CVM está acusando Passos de “perpetrar a irregularidade de manipulação de preços no mercado,” e Cardoso de veicular informação falsa. A autarquia faz as acusações a partir da história contada por mensagens de email e Whatsapp trocadas por Passos com outros funcionários do IRB; e do áudio de uma teleconferência.
Para a CVM, as alegações de Passos em seu depoimento “só reforçam e comprovam a insistente tentativa de sustentar uma versão fantasiosa sobre os fatos, ao passo que manobrava para ocultar a verdade.”
A lista falsa de acionistas do IRB apareceu depois que a Squadra Investimentos divulgou uma extensa carta em 2 fevereiro de 2020 na qual descrevia sua posição “short” em IRB e questionava os resultados do ressegurador.
A partir dali, a credibilidade do IRB ficou sob o holofote do mercado, e Passos saiu em roadshow internacional com a equipe de RI no dia 22 de fevereiro, semana de Carnaval.
No mesmo dia, Passos enviou para a equipe de RI e também para a área de comunicação e marketing do IRB um print da tela de computador com a falsa lista aberta.
Passos diz que a Berkshire havia “aumentado a sua participação no IRB” e pede que a informação seja passada a um “jornalista do nosso relacionamento.” Era um sábado de Carnaval, e a nota foi publicada pela Broadcast em 26 de fevereiro, Quarta-feira de Cinzas.
Ainda no dia 22, Passos disse à gerente de RI do IRB que iria “espalhar essa história de que a berk comprou 28MM de ações” para três conselheiros. “Aí vira verdade!”, ele escreve. Ele também disse que iria “pegar um email antigo com o Ajit… e construir a história!” E então envia uma outra mensagem para a área de comunicação: “Tem esse email da gente agradecendo a eles por ter voltado pra base… que é mais um elemento”, ao sugerir que isso também fosse passado ‘em off’ para a imprensa.”
Nessa mesma semana de Carnaval, o IRB primeiro negou no dia 27 de fevereiro que Ivan Monteiro, ex-Petrobras, estava deixando seu conselho; depois confirmou a saída dele, no dia 28.
Por conta disso, chamou uma teleconferência com analistas no dia 2 de março, uma segunda-feira, para esclarecer a saída de Ivan. Nesse call, um analista pergunta sobre a Berkshire, e Passos “passa a bola” para o CEO: “Cardoso, acho que em questão de Berkshire, você quer começar?”
Passos disse à CVM que essa atitude é prova da boa-fé que teve no episódio, já que Cardoso era quem tinha proximidade com a Berkshire:
“O Cardoso relata a relação histórica dele com a Berkshire, diz do investimento, diz que estava muito feliz, e tudo. Eu, naquele momento ali, entendia que a informação que o Cardoso tinha passado para mim há tempos atrás, e que ele estava passando ali, era verdade. Eu jamais entendi que aquilo não procedia.”
É por conta das afirmações nessa teleconferência que Cardoso está sendo processado pela CVM – ele alega que só disse que a Berkshire era acionista porque havia recebido a informação do RI, uma vez que nunca ouviu essa informação de Ajit.
Naquele momento, o mercado já tinha muita desconfiança de que a lista era falsa, tanto que nenhum analista de banco internacional divulgou relatório sobre a teleconferência. A negativa de Buffett, que virou meme no mercado, só veio na noite do dia seguinte: “Não tenho, nunca tive, nem penso em ter ações do IRB”.
Quando soube do comunicado, Passos novamente interage com a gerente de RI:
“Karaka”; “Nos fudemos!”; “ (…) a gente tem q sustentar q aquela foi a base q recebemos do custodiante”.
No dia seguinte ao comunicado da Berkshire, o conselho convocou uma reunião para as 8h “sem hora para acabar”. Passos e Cardoso continuaram sustentando a história e pediram ao conselho licença para ligar para Ajit.
Cardoso disse à CVM que quando soube pelo RI e imprensa que a Berkshire era acionista, achou uma coisa boa: “finalmente o Ajit achou por bem comprar um pedaço da nossa empresa,” e ficou chocado com o desmentido.
“Aí liguei pra ele, falei, ‘Ajit, olha só, tô vendo uma notícia aqui no jornal que vocês não participam, e eu acho que está ocorrendo algum erro aí com vocês. Aí ele falou, ‘não Cardoso, não tem erro nenhum’. Eu falei, ‘Ajit, eu tenho aqui que vocês participam, e ele falou, olha, eu lamento te dizer, mas há um erro na tua informação, a gente, falou, temos [sic] negócios, mas não, nenhuma, e eu falei, mas nenhuma das suas – a Berkshire tem um monte de subsidiárias, você deve saber mais do que eu –, e eu falei, mas será que nenhuma das suas subsidiárias? Ele falou, não. Certeza.
Aí eu desliguei o telefone. Aí sim, eu falei, aí eu tive vontade realmente de chorar porque, de novo, ao longo da minha carreira, construir credibilidade se leva muitos anos, e isso que eu fiz ao longo da minha carreira inteira. Ser desmentido em um jornal por um cara da importância dele (…). Ali meu mundo caiu. Ali eu falei, não dá mais, eu fiquei muito afetado, e não entendia. O Fernando estava do meu lado e eu disse, Fernando, o que que tá acontecendo? E ele falou, ah, Cardoso, não sei, mas pra mim chega, eu não vou continuar. Eu falei, pô Fernando, mas você não vai continuar? Se você não vai continuar, como eu vou tocar isso aqui? Eu, com a saúde capenga, ele falando que não ia continuar e ele era responsável…”
Cardoso disse à CVM que nesse período tenso do IRB estava afastado por problemas de saúde desde o dia que saiu a carta da Squadra.
“Eu fiquei… quatorze dias afastado nesse período aí e um pouco antes eu tive uma conjuntivite viral muito… eu tinha que fazer raspagem nos olhos a cada dois dias, altamente contagiosa. Fiquei quatorze dias afastado. Nisso, o Fernando, um pouco antes do Carnaval ele foi para Londres para fazer esse roadshow. Eu não tinha condições”.
O ex-CEO disse ainda que ao longo do tempo, se acostumou tanto com Passos que ele “tocava 60, 70 por cento da companhia”:
“O Fernando [Passos] tinha muito mais notoriedade que eu e eu não tinha problema nenhum com isso. O Fernando, veja, um outro detalhe importante, eu ia sair do IRB agora em julho, isso está contratualmente, eu ia parar em julho, eu já estava pensando em parar e seguir outros rumos, então, assim, aí no que ele falou e falei então eu também vou sair, e foi aí que nós, após esse call, voltamos, e apresentamos a nossa demissão, até para deixar, como eu falei… de novo, os senhores podem achar estupidez, inocência, sei lá, de minha parte, mas até agora eu não entendo como isso pode ter acontecido. Quem errou? Onde está o erro? E um erro dessa natureza.”
As mensagens colhidas pela CVM também esclareceram a nomeação – não concretizada – da advogada Márcia Cicarelli para o conselho fiscal do IRB, na mesma semana do Carnaval.
Passos pediu ao diretor de sinistros do IRB que descobrisse quem era o representante legal da Berkshire Hathaway no Brasil e quem representaria formalmente a empresa perante a SUSEP. Eles chegam ao nome da advogada e agendam uma reunião para fazer o convite.
“To armando uma aqui: a Berkshire vai comprar umas ações do IRB na quarta!”, disse Passos, em uma das mensagens ao diretor. A advogada chegou a aceitar o convite para o conselho fiscal.
Em 5 de março, já afastado da empresa, Passos envia uma mensagem ao diretor: “Amigo, sobre a Marcia Cicarelli, queria alinhar um ponto com vc: pra evitarmos problemas para vc nesta questão. Se vc for perguntado, informe que foi pedido a vc avaliar uma pessoa do mundo jurídico e vc pensou no nome dela! nada a ver com berkshire…” E ele complementa: “se for perguntado quem pediu pra vc falar com ela, pode dizer q foi o cardoso! ou o ivan… o ivan assinou a proposta com o nome dela! nao podemos puchar [sic] essa responsabilidade pra gente!” [….]
Advogado, Passos assinou ele mesmo a sua defesa encaminhada à CVM. Ele está contestando o uso de mensagens eletrônicas como provas pela autarquia e diz que não reconhece a autenticidade desses arquivos, que seriam “adulterados, manipulados e descontextualizados”.
Ele está propondo um acordo para encerrar o caso – um termo de compromisso, em que ele não admite culpa e o caso não é julgado.
Passos quer pagar R$ 11,6 milhões em 36 parcelas mensais, o valor líquido de impostos dos R$ 16 milhões calculados pela CVM como a remuneração que Passos tentava garantir divulgando a informação falsa e elevando as cotações do IRB – ele tinha um programa de remuneração atrelado às cotações.
A defesa de Cardoso foi feita pelo Loria e Kalansky Advogados, que não buscou um acordo para evitar o julgamento. Cardoso alega que não tinha porque duvidar da informação de Passos, nem tinha o dever de fiscalizar os atos do CFO. Também disse que quando falou sobre o assunto no call, a informação já estava disseminada no mercado e não impactou positivamente a ação.
A defesa de Cardoso também observa que a acusação da CVM não aponta nenhum sinal de alerta que ele poderia ter considerado e que permitisse levantar suspeitas da informação Passos.
Depois do comunicado da Berkshire, o IRB trocou todo o alto comando, identificou fraudes no balanço – que são investigadas pela CVM em outro processo – e ainda hoje tenta se reerguer.
A ação acumula queda de 95% desde que saiu a carta da Squadra.
Atualmente, a maior preocupação do mercado é que o IRB volte a precisar de um aumento de capital, por estar próximo de um desenquadramento regulatório.
A Squadra recentemente começou a desfazer a posição vendida em IRB.