Boa parte do discurso que BoJack Horseman faz no velório de sua mãe é dedicado às últimas palavras que ouviu dela, em um leito de UTI. “Eu vejo você”, ela disse. BoJack não sabe como interpretar a frase. Beatrice Horseman estaria, em um último lampejo de consciência, finalmente olhando para ele, reconhecendo algum valor no filho que sempre negligenciou e menosprezou? 

 
Reconhecimento é tudo o que BoJack deseja conquistar. Ou reconquistar: nos anos 90, ele foi o protagonista de uma sitcom popular, mas desde então sua carreira estagnou. No funeral, BoJack exercita seu talento de comediante com piadas pouco dignas para a ocasião.  O espectador ri com gosto de suas tiradas rancorosas e ferinas – até que BoJack tem uma súbita iluminação, e compreende o que significam as palavras derradeiras da mãe (não vamos contar o que é para não estragar a supresa).

 
O episódio inteiramente dedicado a um monólogo fúnebre é uma das muitas ousadias de BoJack Horseman, a série de animação da Netflix que chegou ao fim este ano, depois de seis temporadas. O personagem-título é a primeira dessas ousadias: BoJack é um ator decadente, com os defeitos muito humanos próprios das subcelebridades. Também é, como sugere seu nome, um cavalo.
 
A série foi criada pelo produtor Raphael Bob-Waksberg, com design da ilustradora Lisa Hanawalt. A dupla concebeu uma versão subversiva das animações com animais antropomórficos próprias de um Walt Disney.

 
Aqui, bichos de todo o tipo — de gafanhotos a rinocerontes — experimentam angústias e frustrações do mundo humano: trabalham em empregos medíocres, envolvem-se em relacionamentos abusivos, cometem erros irreparáveis, fumam, comem, bebem demais (o próprio BoJack consome drogas em doses… cavalares!) 
 
Na vida sexual, não existe barreira entre espécies: BoJack (dublado no original pela voz grave e áspera de Will Arnett) já teve um caso com sua agente, a gata Princess Carolyn (Amy Sedaris). Também há humanos nesse mundo, como Todd (Aaron Paul), jovem folgado que entrou de penetra em uma festa na casa de BoJack e nunca mais saiu. O elenco principal é complementado por outra humana, Diane Nguyen (Alison Brie), jornalista contratada para ser a ghost writer da autobiografia de BoJack, e pelo leal mas desmiolado cachorro Mister Peanutbutter (Paul F. Tompkins). Como a história se passa em Hollywood, Naomi Watts, Laura Linney e Daniel Radcliffe, entre outras estrelas, aparecem dando voz a versões animadas de si mesmos.
A série explora bem as possibilidades cômicas de bichos em profissões humanas – como, por exemplo, os pássaros paparazzi que sobrevoam mansões de celebridades para tirar fotos indiscretas. Mas o humor de BoJack Horseman ampara-se sobretudo no texto: diálogos ágeis, inteligentes, repletos de referências pop e alusões políticas. Há um equilíbrio muito bem ajustado entre o riso pueril que só o desenho animado consegue despertar e a sátira às perversidades e vícios do showbiz.
 
O humor anárquico que já se via em Os Simpsons ou South Park aqui se desdobra em um drama sombrio. Autocentrado e depressivo, BoJack é capaz de canalhices imperdoáveis, como sabotar as chances de sucesso de um amigo ou levar uma estrela pop que tem problemas com drogas ao fundo do poço. E no entanto sentimos que há qualidades insuspeitas nele, que BoJack talvez seja digno de redenção. Um desenho animado sobre um cavalo falante é talvez a comédia mais adulta que você encontrará na Netflix.