Uma distribuidora de energia que atende parte do Rio de Janeiro se via às voltas com uma pergunta que lhe tirava dezenas de milhões de reais: por que os moradores da periferia fazem ligações ilegais de energia?
Hilaine Yaccoub foi contratada para a missão. Sem fazer ideia da resposta, Hilaine alugou uma casa numa comunidade pobre, mobiliou tudo com móveis populares e viveu lá por oito meses.
A antropóloga do consumo estava aplicando um dos conceitos básicos da etnografia: a ‘observação participante’. Dormia, acordava, comia e vivia junto com as pessoas que utilizavam as ligações ilegais e com os ‘gateiros’ — muitas vezes, funcionários da própria distribuidora de energia. Sentindo-se sozinha numa comunidade diferente, adotou um gato persa para lhe fazer companhia. O bicho virou sensação e a ajudou a se aproximar dos moradores. O gato ajudou entender os gatos.
A conclusão do trabalho foi que, na hierarquia de gastos, a conta de luz — entendida como bem público — estava abaixo das prestações das Casas Bahia, o sonho privado que se materializava.
Para sua tese de doutorado, Hilaine viveu mais três anos na Barreira do Vasco, uma favela de cerca de 7 mil residências na zona portuária do Rio. Virou parte da comunidade e passou a entender como poucos a lógica e as escolhas de quem tem pouco dinheiro e não pode contar com o Estado.
Desde então, trabalha como consultora para uma carteira de clientes que inclui Nestlé, SmartFit/Bioritmo, Natura, DuPont, Intel, Positivo e diversas agências de publicidade.
Hilaine recebeu o Brazil Journal para um papo sobre os anseios do brasileiro médio (pós boom do consumo) e das próprias empresas na era da disrupção.
Você morou em comunidades pobres e na favela em pleno boom do consumo e ascensão da ‘nova classe média’. O que você notou nesse processo?
Primeiro, que não existe essa tal da ‘nova classe média’. Classe média não é só renda. É uma lógica de pensamento, é uma construção de um estilo de vida. Você não se transforma em classe média automaticamente. Isso passa por um longo processo, através de gerações e de diversos fatores, como escolaridade, sociabilidade, educação informal — como viagens –, aí você começa a ter um pensamento lógico de classe média. Eu chamo de consumo popular emergente, de consumidor emergente, classe C emergente.
E você acha que as empresas brasileiras entendem essa classe C?
Um pouco. Acredito que algumas empresas conhecem as camadas populares, mas ainda é minoria. Há um forte entendimento de índices, jornadas de compra, mas estar de perto e olhar por dentro de uma forma empática ainda é bem incipiente. O modo de pensar da classe trabalhadora é muito próprio, e é preciso uma relação íntima para entendê-lo.
A classe C perdeu renda e emprego. O sonho acabou?
O sonho nunca acaba para o consumidor médio brasileiro. Essas pessoas podem ter perdido poder de compra e trabalho com carteira assinada, mas no dia seguinte foram fazer empada pra vender na praia. O pensamento projetivo é uma realidade para este grupo. Eles têm fé no trabalho, na saúde e em um Deus que provê o batalhador honesto. O C da Classe C é de ‘correria’. Não sobra tempo pra quase nada, mas o sonho sempre será a cenoura.
Você se debruçou muito na questão das ligações ilegais de energia. Como as pessoas decidem qual conta elas não vão pagar?
As pessoas têm uma construção de cidadania e de direitos completamente às avessas — o que dá pra entender num lugar onde o Estado praticamente não chega. O que é público é visto como de todo mundo — ou seja, é de ninguém. E a energia não é percebida como prioridade. A Ampla [distribuidora que a contratou, hoje chamada Enel] achava, na época, que a telefonia era a grande ameaça, porque as pessoas pagavam o telefone antes da energia. Na minha pesquisa, eu vi que não é: a rival era as Casas Bahia. O pessoal foi lá, comprou tudo, enfiou na tomada. As pessoas têm o direito de ter? Claro que tem, só que não fazem conta. Mas elas estão aprendendo. Anos depois do meu trabalho na Ampla, fui na casa de uma mulher. Ela tinha cinco grills na bancada, um de cada cor. Ela me explicou que cada um era para uma coisa: um para carne, outro para peixe, outro pra sanduíche e assim vai. Na verdade, eram todos iguais. Perguntei: “E você usa esses grills?”. E ela: “Não, porque puxa muita luz”. O grill virou um enfeite na casa dela, a modernização da casa, um símbolo.
No seu doutorado, você fala muito sobre a ‘economia de compartilhamento’ das favelas. O que é isso?
Na favela, o gato de energia ou outros serviços são apenas um componente de uma economia local, que eu classifiquei como ‘economia de compartilhamento’. As pessoas compartilham energia, sinal de TV, água… Mas não só isso. Compartilham também os serviços: cuidados de criança, de idosos. Nem sempre é remunerado e quando é remunerado é o preço que você pode pagar. São redes de assistência que se resolvem sozinhas. É uma economia local que muitas vezes se sobrepõe à economia global, que é a de mercado. Hoje em dia se fala de economia de compartilhamento e se pensa na Noruega, em ‘coliving’. No Brasil isso acontece desde que a favela é favela.
Você é uma especialista em ‘classe C’ ou seu trabalho vai além disso?
Não. Apesar de toda minha trajetória de pesquisa estar focada nos grupos populares minha formação é clássica. Estudo qualquer grupo, tribo urbana, faixa etária etc. Já desenvolvi trabalhos sobre a cultura fitness, sobre inovação, sobre o pós-luxo para uma marca de roupas slow fashion, sobre sistema financeiro e relação das pessoas com bancos, sobre ativismo de mães nas redes sociais. Há uma elasticidade para atuação do antropólogo nos dias de hoje. Trabalho inclusive estudando culturas organizacionais para diminuir tensões de gerações em ambiente de trabalho. É teoria somada a aplicabilidade prática o tempo todo.
Você usou a observação participativa quando morou na favela. Tem outros exemplos de ‘imersão’ para resolver problemas trazidos pela empresa?
São vários e depende muito do espaço e do tempo que cada empresas tem para o processo. O Grupo Smartfit/Bioritmo chegou pra mim com uma questão: ‘as atividades físicas outdoor podem comprometer meu modelo de negócio?”. E eu passei a frequentar a academia e os diversos tipos de atividades esportivas a céu aberto: corrida, bikers, mahamudra… E passei a conhecer as linguagens, as posturas de cada grupo. Isso impactou o posicionamento do grupo, que passou a envolver mais os alunos em aulas coletivas e focar mais em comunidade de marca.
A Positivo me contratou para um estudo bem aprofundado, de sete meses, para entender o lugar do computador e o lugar do mobile. Eles se orgulhavam muito lá de ter o melhor pós-vendas. Na pesquisa, acompanhei muitas pessoas, várias que não saíam de perto do celular. Uma menina me falou: “O celular faz parte do meu corpo, é como se fosse um dente”. Respondi: “Como assim, um dente?”. E ela: “Um dente da frente: como eu vou sorrir sem ele?”. Fui apresentar o resultado e disse pro diretor: “você sairia de casa sem o dente da frente?”. Ele, claro, respondeu que não. Mostrei que o pós-vendas, mesmo eficiente, não valia de nada, se a pessoa tivesse que ficar sem o celular que fosse por um dia.
Um outro case que tenho muito orgulho foi um trabalho para a Publicis, que estava na concorrência da conta do Bradesco. Uma das perguntas que me fizeram foi justamente sobre o consumidor médio e a crise econômica. Era o começo da onda de crise econômica, e, sem pensar muito, com base no meu repertório, disse: “pobre não tem tempo de pensar em crise, pobre sempre pensa pra frente”. Foi justamente com o slogan ‘pra frente’ que a agência conseguiu ganhar a concorrência. Lá eles me chamam de a “antropóloga do ‘pra frente’”.
Que tipo de empresa vem te procurar e em que situações?
São gestores que buscam detalhamento, querem aumentar o conhecimento sobre seu cliente ou consumidor. Hoje há uma tendência pela busca de conhecimento genuíno e aprofundado sobre produtos, serviços e consumidores e a antropologia tem meios para aumentar o repertório analítico dos tomadores de decisão. Com isso eles podem gerir as empresas com mais propriedade e segurança. Eu faço esse papel.
No entanto, infelizmente as marcas me procuram em momentos de emergência, quando algo dá muito errado, os números estão no vermelho. Eu costumo dizer que vivo apagando incêndios. Não deveria ser assim. Pesquisa é investimento e não despesa.
Você já trabalhou em campanha eleitoral?
Na última eleição, trabalhei com um presidenciável. Minha tarefa era transmitir minhas percepções sobre o que as pessoas assistiam no horário eleitoral de todos os candidatos. Fiz isso seis vezes por semana durante todo o horário político.
Em todos os programas do PT, quando a Dilma aparecia na TV as pessoas olhavam para o relógio. O programa era longo, não tinha dinamismo e ela era percebida como chata e enfadonha. Apesar de reclamarem das promessas, o povo de modo geral quer ver performance justamente nesse campo, o das promessas. Uma promessa bem feita e crível vale diamante na corrida pelo voto.