O grande pianista brasileiro Arthur Moreira Lima faleceu na quarta-feira, aos 84 anos, após uma longa luta contra o câncer. 

Apesar da dura realidade sobre a fatalidade da vida e da morte, o Arthur que eu conheci teria dispensado, imagino eu, este modo solene e triste com o qual abri este texto. Certamente teria preferido celebrar a vida que viveu tão plenamente. 

Lembro-me como se fosse ontem do choque que tive ao entrar no amplo e elegante apartamento de Arthur na Avenida São Luis, em São Paulo, para uma de suas aulas geniais. Quem me atende à porta é sua esposa daquele período. Ela estava aos prantos com a revista Veja nas mãos e, entre uma lágrima e outra, sussurrou: “O Arthur fugiu com a sua nova namorada para Paris! Olha, Marcelo! Saiu na Veja!” 

O Arthur que eu conheci era a antítese do pianista sério de casaca e tudo mais. Um carioca extremamente culto mas cujo senso de humor o levava, às vezes, a interromper uma aula sobre uma sonata de Beethoven para me contar uma piada. 

Arthur viveu muitos anos em Moscou no início de sua brilhante carreira de concertista internacional – até hoje, os historiadores se dividem sobre como aquele carioca da gema conseguiu passar tanto tempo no frio soviético.

Os mestres de Arthur foram Lúcia Branco, no Rio de Janeiro, Marguerite Long em Paris, e Rudolf Kehrer no Conservatório Tchaikovsky de Moscou, onde se formou. Arthur se projetou internacionalmente ao ser premiado no Concurso Internacional Frederic Chopin em Varsóvia, quando começou a se apresentar nas principais salas de concertos do mundo ao lado de orquestras internacionais regidas pelos maestros mais célebres da época. 

Durante um concerto seu em Nova York nos anos 80, eu estava na plateia e Arthur tocou somente Chopin; uma de suas especialidades. Ouvir Arthur Moreira Lima naquela época era, para mim, como ler os poemas de Lorca ou de Borges. Quando ele tocava, contava histórias ao piano. Um som límpido com uma leveza cristalina.  Nota após nota, pausa após pausa, ele fazia poesia. 

Anos mais tarde, durante uma apresentação em São Paulo, Arthur contou ao público um pouco da história do compositor Ernesto Nazareth e de sua valsa intitulada Pássaros em Festa, que ele interpretou em seguida. “Vejo essa valsa,” disse ele, “com os passarinhos se juntando para ouvir uma melodia nascida da miscigenação sonora entre Chopin e os ritmos do Morro do Rio de Janeiro do final do Século XIX”. Aquela noite trouxe lágrimas aos olhos.   

O Arthur gostava de conversar. Falava sobre as suas andanças pelo mundo, sobre a vida na Rússia, sobre o comunismo que defendeu durante toda a vida, sobre o Rio de Janeiro, as viagens de trem durante suas turnês no Chile e na Argentina, quando ele não conseguia dormir nos vagões-leito apertados de então. Falava sobre a graça tensa e egocêntrica dos maestros com os quais se apresentara, sobre os casos de amor que suavizavam sua vida de solitário concertista viajante, e principalmente sobre o Fluminense do qual era torcedor fervoroso.  

Pra mim foi uma grande honra ter estudado com ele, um artista genial com infinitas faces musicais. Mas se eu tivesse que escolher uma linha para traçar o seu percurso artístico, eu escolheria um percurso que parte da música erudita e vai até a música popular, através das suas memoráveis interpretações de dois grandes compositores que ele amava profundamente e interpretava como ninguém: Frederic Chopin e Ernesto Nazareth, cuja ligação traduz o próprio percurso de Moreira Lima, a história da música universal e a história do Brasil. 

Arthur nos deixa uma mensagem importante: a capacidade de compreender a diversidade cultural e musical do nosso País. Interpretou como poucos os grandes clássicos da música universal e, em certo momento da sua brilhante carreira internacional, ele se voltou para o Brasil mergulhando profundamente na música popular e no folclore do nosso País e levando essa música e diversidade aos quatro cantos do Brasil de maneira extremamente democrática.  

Estamos falando de alguém que arrebatou os palcos de todo o mundo quando jovem, levando ao delírio o público e a crítica. De Moscou a Nova York, do Rio de Janeiro a Paris, de Berlim a Viena.

Mas o projeto do qual ele mais gostava se chamava Piano pela Estrada. Um projeto sociocultural que refletia exatamente o que ele pensava sobre a força da música de concerto.  Era uma grande turnê, que levou diversos anos para ser realizada, e na qual ele viajava pelo País acompanhado por um caminhão especialmente desenhado e fabricado, levando um palco desmontável para Arthur fazer concertos em praças públicas de pequenas cidades brasileiras.

O repertório ia da música erudita à música popular. Música sem fronteiras executada com excelência artística nos mais distantes territórios. “Concertos gratuitos para todos,” como ele me contou animadamente em nosso último encontro antes da pandemia, após um concerto seu em São Paulo.

Viva Arthur Moreira Lima!

Marcelo Bratke é pianista.