Em março de 2020, o Theatro Municipal de São Paulo se preparava para a estreia da ópera Aída, de Giuseppe Verdi (1813-1901), quando a tragédia se abateu sobre a produção.
Seis pessoas da equipe – entre elas Naomi Munakata, regente do coro – morreram de covid-19, adiando o espetáculo por tempo indeterminado.
Dois anos e três meses depois, a história do amor proibido entre o general egípcio Radamés e a escrava etíope Aída finalmente ganhou sete récitas na mais tradicional das casas eruditas – mas esta oportunidade vai só até domingo.
O espetáculo tem regência de Roberto Minczuk e direção cênica e cenografia de Bia Lessa.
O adiamento trouxe uma certa contemporaneidade ao enredo: em meio ao confronto na Ucrânia, nada mais oportuno que uma obra que contesta a banalidade belicista.
“Falamos não apenas da guerra em si, mas da guerra social que presenciamos no dia-a-dia”, Bia Lessa disse ao Brazil Journal. “O mundo estava aos pedaços em 2020, e hoje está pior”.
Minczuk completa: “A Bia não explora a questão de glória, mas a tragédia da guerra, que muitas vezes é deixada de lado. Tem muito a ver o que acontece hoje.”
Aída foi uma encomenda dos egípcios a Verdi para abertura da Casa de Ópera do Cairo. O maestro Minczuk comenta que o compositor a princípio se mostrou reticente em atender ao pedido da nação africana.
“Verdi só concordou quando soube que os egípcios chamariam Richard Wagner caso ele não aceitasse,” diverte-se, citando a tradicional rivalidade com o autor romântico alemão.
O italiano forjou então uma obra que traz toda a visão idealizada que se fazia do Egito, que então passava por um período de descobertas arqueológicas – a exploração das estátuas e dos sarcófagos dos faraós e dos membros da nobreza data do início do século XIX. “Ele quis criar algo exótico, sensual, místico,” diz Minczuk.
Já no texto, Verdi e o libretista Antonio Ghislanzoni urdiram uma história universal de um amor proibido em meio a uma disputa de poder. Radamés é um general do exército que se apaixona – e é correspondido – por Aída, escrava da princesa Amnéris.
Quando o militar é escolhido pelo faraó para combater os etíopes, a serva, que na verdade é filha do rei da Etiópia, se divide entre ser leal a seu amor ou a seu povo.
A criação de Verdi estreou, com sucesso, em 24 de dezembro de 1871. Ele traz alguns dos “cavalos de batalha” do compositor italiano. Caso de A Marcha Triunfal, que por vezes é utilizada no cinema.
Há também momentos desafiadores. Celeste Aída, ária de abertura, por vezes se torna um terreno pantanoso. Em 2006, o tenor francês Roberto Alagna, que por tempos foi considerado um provável substituto de Luciano Pavarotti, ganhou um quinhão de vaias na montagem do Teatro alla Scala de Milão por supostamente ter desafinado nessa famosa passagem. Alagna saiu do palco de punhos cerrados e seu substituto se tornou o primeiro general do antigo Egito a trajar calça jeans (não teve tempo para trocar de roupa).
O tenor letão Aleksandrs Antonenko também recebeu seu quinhão de “buuus” ao fraquejar no papel de Radamés na montagem da Metropolitan Opera House, de 2018.
Aída é um espetáculo suntuoso. Montagens anteriores chegaram a usar animais durante a cena em que o vitorioso Radamés adentra o Egito – havia uma profusão de elefantes, cavalos e girafas nas principais casas de ópera ao redor do mundo. (A ideia tem caído em desuso, apesar do Metropolitan ter se utilizado de cavalos numa encenação quatro anos atrás.)
Na montagem de São Paulo, Bia Lessa faz uso de elefantes e girafas cenográficos e com uma visão mais realista dos efeitos da guerra. Eles aparecem com flechas e há soldados feridos.
Outra dificuldade é que Aída conta com diversos elementos além da orquestra e coro tradicionais – há, por exemplo, um mini-grupo sinfônico que atua fora do fosso onde está localizado o conjunto dos músicos. “Exige mais tempo de preparo por causa do excesso de elementos. Cada grupo é preparado separadamente”, diz Minczuk.
No Brasil, Aída chegou a ser apresentada em estádios de futebol e até no sambódromo na década de 1990. Melhor ficar com outra recordação: a encenação da ópera no Rio de Janeiro, no dia 30 de junho de 1886, marcou a estreia na regência de Arturo Toscanini (1867-1957), um dos maiores nomes da batuta do século XX. Ele era violoncelista da orquestra quando substituiu o maestro titular. Dali partiu para uma carreira internacional.
A versão de Aída do Theatro Municipal traz – pela primeira vez em 111 anos da casa – duas protagonistas negras (em geral, as sopranos pintam a pele para chegar a uma tonalidade morena). E que solistas! Priscila Olegario tem uma carreira no exterior e chegou a interpretar a nobre etíope transformada em escrava numa montagem do Teatro di San Carlo, em Nápoles. Marly Montoni brilhou no oratório El Niño, de John Adams, e Turandot, de Puccini, apresentados no mesmo Theatro Municipal. Um ambicioso retorno ao chamado “novo normal” no mundo da ópera.
“Soa para nós como uma conquista, superamos diversos momentos ruins para poder voltar ao palco com todas as forças. É a primeira grandíssima produção de ópera do Theatro desde a pandemia e marcaram as últimas atividades que a nossa colega, a maestrina Naomi Munakata, participou preparando o coral paulistano. Então fazer essa obra acontecer é, em parte, uma grande homenagem à memória dela,” conclui Minczuk.