O Ministro Lewandowski recentemente concedeu liminar impedindo que os resultados preliminares do Censo de 2022 sejam utilizados pelo Tribunal de Contas da União para fins de distribuição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) quando um município se sentir prejudicado.
A liminar parece desconhecer a raiz do problema e termina por beneficiar alguns poucos municípios em prejuízo da maioria. Pior: não há razão para crer que os resultados apurados pelo IBGE em 2022 sofrerão mudanças substanciais nos próximos meses. A liminar, portanto, tão somente adiou o momento da revisão para baixo desses coeficientes.
Argumentou-se junto ao STF que o problema reside na extensão do Censo de 2022, que não tinha alcançado todos os municípios no momento da fixação dos coeficientes individuais de participação pelo TCU, prejudicando quase 900 entes.
Independentemente, porém, da qualidade do Censo, há um problema muito maior, que decorre das regras de partilha do FPM.
Pode parecer um problema lateral. Não é.
Ele interfere na distribuição de recursos que afetam a vida de pessoas em milhares de municípios. Mais ainda: esse caso exemplifica como decisões apressadas do Judiciário e do Legislativo terminam por beneficiar quem se aproveita da tortuosidade e superficialidade do nosso sistema legal.
Há décadas são propostos ajustes na legislação que rege a partilha do FPM e que prometem reduzir o problema. Contudo, os grupos beneficiados pelas regras vigentes bloqueiam as reformas que diminuiriam as distorções e acabam viabilizando outras que nada resolvem e ainda aumentam os problemas. Vejamos do que se trata.
Para começar, resgatemos um fato que deveria ser óbvio, mas que passa despercebido na guerra de ações judiciais sobre o FPM. Todo ano, esse fundo recebe um percentual da arrecadação do Imposto sobre a Renda e do IPI para ser distribuída entre os municípios. Se alguns recebem mais, outros recebem menos. Trata-se de um jogo de soma zero, em que o ganho de um significa perda para o outro.
A partilha dos recursos se dá em três blocos: 10% do Fundo é dividido entre as capitais de estado (FPM – Capital), 3,6% vão para os municípios mais populosos e que não são capitais (Reserva do FPM) e os 86,4% restantes são divididos entre todos os municípios que não são capitais (FPM – Interior). É na divisão dessa última parte, definida conforme a população municipal, que se concentra a celeuma.
A raiz do problema está no fato de que desde os anos 1960 se estabeleceu a divisão dos recursos por faixas populacionais, conforme descrito no Gráfico 1.
A escadinha que vemos no gráfico significa que um município com 10.188 habitantes tem um coeficiente de participação igual a 0,6. Se esse município ganhar apenas um morador já pulará para o coeficiente 0,8, recebendo alguns milhares de reais a mais. Isso se repete em todas as mudanças de faixa populacional. O mesmo ocorre nos outros degraus da escada.
Ora, nem mesmo o mais preciso dos censos demográficos conseguirá estabelecer com certeza absoluta o tamanho da população de cada um dos 5.570 municípios brasileiros. Mesmo uma pequena margem de erro é suficiente para fazer um município saltar de uma faixa para outra. As regras do jogo incentivam a reclamação dos municípios cuja população ficou um pouco abaixo do limite, assim como promovem o silêncio dos que ficaram um pouco acima.
Em 2013, Leonardo Monastério já havia mostrado que os números finais do censo demográfico e das contagens populacionais (que são sujeitos a recursos administrativos ou judiciais dos municípios) geravam um improvável acúmulo de municípios com população um pouco acima do limite inferior de cada faixa populacional do FPM. Após o levantamento do IBGE, os municípios usualmente recorrem para que suas populações sejam “puxadas para cima,” subindo um degrau nas faixas de distribuição.
Ou seja, um critério de partilha de recursos mal desenhado estaria levando a estatísticas populacionais equivocadas.
O Gráfico 2, copiado do texto de Monastério, dá uma visão clara do fenômeno: as linhas finas indicam as mudanças de faixa do FPM, e o histograma mostra o acúmulo de municípios com população logo acima da mudança de faixa. O fenômeno é mais acentuado nas três primeiras faixas.
O cálculo dos coeficientes é feito, a cada ano, com o IBGE estimando a população dos municípios. São consideradas as tendências locais das taxas de natalidade e mortalidade e dos fluxos migratórios. Essa estimativa é repassada ao TCU, que aplica, no caso do FPM – Interior, a regra do Gráfico 1, e divulga os coeficientes dos municípios.
Sempre que as estimativas, as contagens e os censos apontam grandes correções (para cima e para baixo) em relação ao ano anterior, há o conflito que estamos assistindo no momento: quem perdeu população reclama, enquanto quem ganhou fica calado.
Existe uma solução simples para esse problema: acabar com as faixas populacionais na definição das cotas, passando a defini-las por meio de uma regra progressiva, na qual o aumento de apenas um habitante na população local implicasse o acréscimo proporcional no valor do coeficiente. Isso eliminaria os degraus que vemos no Gráfico 1 e extinguiria o incentivo aos municípios para ampliar o número de habitantes no registro oficial.
O IBGE já apresenta essa solução pelo menos desde o ano 2001. Em 2010, o Senador Tião Viana propôs um projeto nesse sentido, que foi ignorado e arquivado em 2019. Nesse mesmo ano, o Senador Eduardo Braga apresentou projeto similar, mas sem perspectiva de apreciação pela Comissão de Assuntos Econômicos.
Em compensação, prosperam projetos tortuosos que tentam atender os perdedores sem prejudicar os ganhadores. Mas isso é obviamente impossível, pois, como afirmado acima, o valor total a ser distribuído é fixo: para alguém “não perder”, outro não pode receber mais em razão do maior número de habitantes apurados pelo IBGE.
Em 1989, às vésperas da realização do Censo de 1991, a Lei Complementar 62 estabeleceu que uma nova lei iria determinar os critérios de partilha do FPM tão logo se dispusesse dos dados censitários. Porém, uma vez publicados os resultados, os perdedores se mobilizaram e conseguiram postergar a mudança, com as Leis Complementares 71/92 e 74/93 prorrogando a vigência dos antigos critérios.
Em 1997, a Lei Complementar 91 finalmente determinou a adequação das populações, para fins de cálculo do FPM, aos dados do censo anterior, mas com uma regra sui generis para fazer a transição entre os coeficientes vigentes e os novos: os ganhadores passariam de imediato para os coeficientes novos, enquanto os perdedores teriam uma regra de transição com duração inicial de cinco anos, mas depois ampliada para dez pela Lei Complementar 106/2001.
A conta é sempre paga por alguém. Como mostra Alexandre Rocha (vide Tabelas 11.1 e 11.2), o método utilizado naquela ocasião, a contrario sensu, acabou prejudicando ainda mais os municípios que pretendia beneficiar.
Em janeiro de 2019, ainda antes da pandemia e sem que se previsse o adiamento do Censo de 2020, os potenciais perdedores fizeram aprovar outra regra que blindava seus coeficientes. A Lei Complementar 165/2019 fixou os coeficientes de 2018 como piso para os novos rateios até que o novo censo fosse concluído. Também nesse caso a conta do desajuste recaiu nas costas do IBGE: argumentou-se que as estimativas informadas pelo órgão tinham deixado de ser confiáveis em decorrência da não realização da contagem populacional de 2015.
Mais uma vez, não se mexeu nos coeficientes dos potenciais ganhadores, levando a uma nova inconsistência distributiva. A Lei Complementar 165 estabeleceu que, a partir de 1º de janeiro de 2019, até que sejam atualizados com base em novo censo demográfico, ficam mantidos, em relação aos municípios que apresentem redução de seus coeficientes decorrente de estimativa anual do IBGE, os coeficientes de distribuição do FPM utilizados no exercício de 2018. Foi com base nesse dispositivo que o STF concedeu a liminar mencionada inicialmente.
Como acontece muitas vezes no Brasil, o Judiciário decide com facilidade sem atentar aos detalhes da regra. O montante de recursos recebido por cada município não é ditado diretamente pelo seu coeficiente, mas sim pela sua participação no somatório de todos os coeficientes do mesmo estado.
Feita a conta corretamente, considerando a efetiva participação percentual no bolo (fixo) de recursos do FPM, ao se mudar as cotas vigentes em 2022 para aquelas baseadas no censo, 1.905 municípios interioranos (de um total de 5.542 – lembrando que as capitais não entram nessa partilha) teriam suas participações reduzidas no FPM e outros 3.637 aumentariam as suas participações. É a regra do jogo.
Adotada a liminar, surge grande distorção: o número de municípios perdedores sobe de 1.905 para 4.685. O número de ganhadores cai de 3.637 para 857. A liminar, cujo objetivo era evitar a queda da participação dos municípios reclamantes, acaba por aumentar a participação dessa minoria, prejudicando todos os demais.
Regras mal desenhadas são insumo suficiente para pressões políticas e a judicialização usual no nosso país. A precipitação do Judiciário, com suas liminares de afogadilho, pouco embasadas tecnicamente, acaba incentivando o pedido de liminares que favorecem os oportunistas em detrimento dos que precisam de mais recursos.
A pergunta que fica é: por que não se aprova uma solução definitiva, com a extinção dos degraus vistos no Gráfico 1? A resposta parece estar no fato de que, além do sistema de faixas, o conjunto total de critérios do FPM gera um grupo muito claro de vencedores: municípios pouco populosos, situados na primeira faixa do Gráfico 1, com menos de 10.188 habitantes.
Esse grupo é extremamente organizado e trabalha para que nenhuma mudança substancial seja feita no FPM. Esses entes são, inclusive, fortes o suficiente para aprovar seguidas emendas constitucionais que, de tempos em tempos, aumentam o tamanho total do Fundo (Emendas 55/2007, 84/2014 e 112/2021), de modo que todos fiquem satisfeitos, mas com eles mesmos ganhando proporcionalmente mais.
Para eles, há o risco de que, mudando-se o sistema de faixas populacionais, também se alterem os parâmetros populacionais, de modo a remover o grande viés que existe a favor de municípios pouco populosos. Alexandre Rocha, Marcos Mendes e coautores já trataram da ineficiência e injustiça distributiva do FPM aqui, aqui, aqui, aqui e aqui .
Pelo que se vê do debate público, está se abrindo novamente a temporada das discussões tortuosas, que levarão a mais uma tentativa inconsistente de “proteger os perdedores e garantir o ganho dos ganhadores”. Mais adiante, para acomodar a todos, aprova-se mais um aumento no tamanho do Fundo, comprometendo outras políticas públicas ou aumentando-se ainda mais a carga tributária.
O sistemático adiamento do momento da revisão para baixo dos coeficientes do FPM – Interior dos municípios que perderam população só alimentará, na ausência de mudanças nos critérios do rateio, demandas por novos congelamentos dos coeficiente e/ou por novas regras de transição.
Com efeito, em um contexto de progressivo esvaziamento populacional das zonas menos dinâmicas economicamente, a diferença entre os coeficientes apurados em 2018 e os coeficiente efetivamente devidos só aumentará. Isso enfraquecerá ainda mais o já tênue vínculo entre a quantidade de habitantes e a provisão de recursos públicos condizentes com as suas necessidades.
O censo de 2022 pode até ter seus problemas, mas não pode ser responsabilizado pela bagunça e conflito que resultam das regras do FPM, típicas de um país que busca precipitadamente atender a quem grita mais alto.
Alexandre Rocha é consultor legislativo do Senado. Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper. Marcos Lisboa é presidente do Insper.