Nos anos 60, o então ministro das finanças francês, Valéry Giscard d’Estaing, disse que o dólar tinha o “privilégio exorbitante” de ser a principal moeda de reserva do mundo.
Em seu livro homônimo, o economista Barry Eichengreen resumiu assim: “Custa apenas alguns centavos para o Bureau of Engraving and Printing imprimir uma nota de US$ 100, mas, para obter uma, todos os outros países têm que desembolsar o mesmo valor em mercadorias reais.”
De lá pra cá, entra crise e sai crise mas nada muda para a doleta: o Congresso americano continua aprovando pacotes cada vez maiores de resgate da economia, e o Fed, tocando o pau na maquininha.
Mas agora, a conta pode estar chegando.
Stephen Roach, o ex-presidente do Morgan Stanley na Ásia e pesquisador de Yale, acha que a dominância do dólar está enfrentando ameaças existenciais — e o final da novela pode ser a volta a ‘estagflação’ dos anos 1970 nos Estados Unidos.
Private bankers e wealth managers… are you f ***ng ready?
Para Roach, o dólar pode afundar cerca de 35% nos próximos dois anos frente a outras moedas fortes.
“A economia americana sofre com desequilíbrios macroeconômicos significativos há muito tempo, como uma taxa de poupança doméstica muito baixa e um déficit crônico na conta corrente,” Roach disse à CNBC.
Segundo ele, esses problemas vão se acentuar nos próximos anos na medida em que o déficit público dos Estados Unidos explodir com o aumento de gastos com a crise da covid-19 e a redução da poupança doméstica.
“A taxa de poupança nacional, ajustada pela depreciação, provavelmente vai se aprofundar no campo negativo de uma maneira jamais vista na história da economia dos EUA,” disse ele. “Ao mesmo tempo, estamos nos afastando da globalização e focados em nos separarmos do resto do mundo.”
Para ele, esses três fatores são “uma combinação letal” e devem fazer com que o dólar caia “de forma muito, muito acentuada.”
Num artigo de opinião na Bloomberg, Roach aprofundou sua tese.
Segundo ele, na crise financeira de 2008 a poupança nacional dos EUA foi para o campo negativo pela primeira vez, ficando numa média de -1,8% da renda nacional entre o terceiro trimestre de 2008 e o segundo trimestre de 2010.
Desta vez, ele acha que uma queda muito mais acentuada para o campo negativo é provável, com a poupança nacional entrando na zona inédita de -5% a -10% da renda nacional. (No primeiro trimestre de 2020, a poupança já caiu para 1,4% da renda nacional — atingindo a mínima desde 2011 e bem abaixo da média de 7% registrada entre 1960 e 2005.)
“O colapso da poupança aponta para uma queda mais acentuada do déficit em conta corrente, provavelmente empurrando-o abaixo do low de -6,3% do PIB que atingiu em 2005”, Roach escreveu no artigo. “Moeda de reserva ou não, o dólar não será poupado nessas circunstâncias.”
A maior implicação desse crash sem precedentes? Um aumento grande da inflação — já que os Estados Unidos pagarão mais caro pelas importações — que terá que ser combatida com um aumento nos juros pelo Fed.
Roach certamente não é o primeiro observador a questionar os fundamentos do dólar. Jim Rogers, o lendário investidor de commodities, há anos bate na tecla de que a irresponsabilidade fiscal americana vai minar o status do dólar como reserva de valor — ainda que no início deste ano Rogers tenha ficado “taticamente” comprado em dólar.
Roach recebeu pushback depois que publicou sua tese na Bloomberg.
A maioria dos contra-argumentos se resumia à “defesa TINA”— a ideia de que, quando se trata do dólar, “There Is No Alternative”.
Em outras palavras: todos os países precisam manter o dólar porque ele é a referência dos negócios na economia mundial.
Mas Roach aponta que a participação do dólar nas reservas internacionais dos bancos centrais declinou de 70% há 20 anos para menos de 60% hoje (o que ainda é muito mais do que a participação dos EUA no comércio global). E, com os EUA trabalhando ativamente pela desglobalização, essa tendência pode ganhar velocidade.
“Se a TINA é a única esperança do dólar, cuidado!” escreveu Roach. “Os problemas de poupança e conta corrente dos Estados Unidos estão prestes a voltar com tudo, e o resto do mundo está começando a parecer menos mau. Sim, um dólar mais fraco aumentaria a competitividade dos EUA, mas apenas por um tempo. Não obstante a arrogância do ‘excepcionalismo americano’, nenhum país importante jamais atingiu a prosperidade sustentada por meio da desvalorização da sua moeda.”