Nas religiões contemporâneas — especialmente as monoteístas que ainda vigoram — o conceito de “vida” sempre esteve centrado na espécie humana como expressão máxima das virtudes e reflexo do divino.
No judaísmo, somos criados b’tzelem Elohim — à imagem de Deus. No cristianismo, essa imagem e semelhança também é o fundamento da dignidade humana. No islamismo, o ser humano é o khalifa, o guardião da criação e espelho de Allah. No hinduísmo, cada pessoa carrega um atman (alma), expressão do Brahman (o divino).
Em comum, essas tradições conferem à humanidade um lugar de destaque na criação, com responsabilidade moral sobre as demais formas de vida, mas também uma hierarquia implícita em relação à fauna, flora e outros seres sencientes.
Esse elo hierárquico — onde o ser humano ocupa o topo — tem sido cada vez mais questionado. Intelectuais como Yuval Harari, o autor de Sapiens, criticam esse fundamento como construção cultural e não como verdade biológica ou ética.
Mais recentemente, uma terceira “classe” de vida entrou no debate: a inteligência artificial.
Em janeiro, o Vaticano publicou Antiqua et Nova, uma nota doutrinal que posiciona oficialmente a Igreja Católica sobre os avanços da IA.
Elaborada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé em colaboração com o Dicastério para a Cultura e a Educação — com aprovação do Papa Francisco — o documento traz um alerta claro: cuidado para não confundir consciência com código.
A mensagem central é direta: a IA pode ser útil, mas não substitui a inteligência humana, pois não possui alma, moral nem responsabilidade. A nota critica a crescente tendência de atribuir traços humanos às máquinas — como intenção, sensibilidade ou autonomia — afirmando que isso empobrece a própria compreensão da condição humana. “Quanto mais projetamos humanidade nas máquinas,” diz o texto, “mais corremos o risco de nos desumanizar.”
Longe de adotar uma postura tecnofóbica, Antiqua et Nova propõe diretrizes éticas para o uso da IA: transparência, justiça, responsabilidade e inclusão. E convida educadores, formuladores de políticas e líderes espirituais a se engajarem no debate.
O documento também dialoga com a encíclica Laudato Si’, que defende uma “ecologia integral” e aqui ganha uma nova camada: o impacto das tecnologias emergentes sobre a ética, a cultura e a dignidade humana.
Com esse posicionamento, o Vaticano não tenta competir com o Vale do Silício — mas faz questão de lembrar que, em tempos de GPTs, drones e biometria algorítmica, a grande questão não é o que a IA pode fazer, mas o que ela não deve substituir.
Pelo menos sob a ótica católica, o lugar da humanidade ainda está garantido no topo da criação. A dúvida é por quanto tempo.
Pedro Thompson é ex-CEO da Yduqs e da Alliança Saúde.