​Houve um tempo, num passado não tão distante, no qual as pessoas, pela escassez de fontes, ouviam os mesmos discos, assistiam às mesmas novelas, assinavam o mesmo jornal e liam os mesmos livros. Era o chamado mainstream.

No Brasil, nesse passado que os millennials não viveram, boa parte da população aguardava ansiosamente Roberto Carlos lançar seu disco nas proximidades do Natal. Todos ouviam o Rei (quem deixava de escutar as canções de Roberto não tinha coração). Seu novo disco anual era “o” assunto. Suas faixas tocavam nas rádios e nas lojas de discos (quando isso existia). A gente falava das músicas. Discutia-se – “Roberto foi longe demais com Cavalgada” ou “O côncavo e o convexo é muito explícito!”. Nesse mainstream, nós nos encontrávamos.

O mesmo fenômeno ocorria quando um livro era bom. As pessoas liam. Debatiam. Argumentavam. Riam e choravam juntas. Era uma viagem coletiva.

Em 1984, Milan Kundera lançou A insustentável leveza do ser. Nascido em Praga em 1929, Kundera vivera a Segunda Guerra Mundial, quando seu país fora ocupado pela Alemanha. Testemunhou a virada comunista, com o controle da Checoslováquia pela União Soviética a partir de 1948.

O escritor participou ativamente da Primavera de Praga, movimento no qual a população Tcheca buscava conquistar liberdade do jugo soviético. Lamentavelmente, a repressão aumentou.

Mais adiante, em conflito com o Partido Comunista, Kundera se mudou para França. Lá, escreveu seus romances, que, contudo, seguem na sua essência reféns de sua terra natal.

A insustentável leveza do ser foi um sucesso instantâneo. Traduzido rapidamente para dezenas de idiomas, chegou ao Brasil em 1985 pela Nova Fronteira. Naquela época, para adquirir um bem, qualquer que fosse, ia-se fisicamente à loja. Nas livrarias, o livro da moda era exposto na primeira prateleira. Nelas, encontrávamos A insustentável leveza do ser.

Kundera nos faz refletir, nesse romance cravejado de citações filosóficas, sobre assumir compromissos. A velha e humana hesitação hamletiana: ser ou não ser. O autor fala dos fardos que carregamos ao longo da vida: eles tornam mais pesada a existência, mas também mais real e verdadeira. O contraponto é a negação de qualquer fardo, tornando o ser leve, mas cujos movimentos são “tão livres como insignificantes”. Segundo o autor, devemos optar entre o peso e a leveza.

​Tomas é um neurocirurgião na Praga dos anos 60. Ele rejeita compromissos. Não vê o filho ou a ex-mulher. Afastou-se de seus pais. Tudo sem grandes remorsos. Tem um grupo de amantes, com as quais não mantém relação afetiva. Metódico, faz um plano para que os encontros sejam espaçados. Esse caminho “leve” de levar a vida é interrompido quando Tomas conhece Teresa.

O encontro com Teresa, que vivia no interior da Checoslováquia, se dá por uma série de acasos, o que faz Tomas pensar sobre o poder de controlar nossos destinos.

Teresa, sobrevivente de uma relação familiar abusiva, tem carências. Tomas sente, desde o começo, enorme compaixão, como se ela fosse uma criança abandonada à sua porta.

As relações extraconjugais de Tomas são fonte de grande sofrimento para Teresa. Ela tenta agir da mesma forma, mas não consegue. Uma das amantes do médico, Sabine, torna-se amiga de Teresa. Sabine é uma pintora, linda e independente. Sua liberdade se extravasa também na forma como lida com o sexo – ela protagoniza passagens de profundo lirismo e sensualidade (a imagem da voluptuosa Sabine, completamente nua, salvo por um chapéu coco, perturbará para sempre a mente de alguns leitores).

​Tomas amargura o dilema: leve ou pesado?

Ele se casa com Teresa e lhe dá uma cadela – batizada Karenin, em homenagem ao romance de Tolstoi. Provas de amor.

Em 1968, quando para reagir ao movimento popular que exigia mais liberdade – a Primavera de Praga – a Checoslováquia é invadida pela União Soviética, a vida de Tomas, Teresa e Sabine sofre com os rigores da repressão política. Sabine foge para a Suíça. Tomas e Teresa também saem da Checoslováquia, mas acabam voltando.

​Por motivos políticos, Tomas perde o emprego no hospital. Torna-se um limpador de vidros.

Tomas e Teresa decidem deixar Praga, mudando-se para o interior, numa pequena aldeia, longe da civilização, longe das amantes de Tomas. Passam a viver de forma simples. A cadela deles tem que ser sacrificada – é Tomas quem aplica a injeção letal –, o que os obriga a pensar nas escolhas que fazemos em função do amor.

A insustentável leveza do ser evocava o que era importante refletir naquele momento: nossa capacidade de decidir os caminhos que vamos trilhar. Nosso desejo (ou não) de compreender o mundo que nos cerca – e as responsabilidades que assumimos (ou não) para modificá-lo. Nisso, o mundo não mudou. Pensar em como reagir segue na ordem do dia.​

​O livro de Kundera critica a ditadura comunista e a forma como tolhia as liberdades individuais. Em meados dos anos 80, antes da queda da Cortina de Ferro, esse questionamento era fundamental.

​O desejo de liberdade também avançava nas convenções sociais, questionando-se a monogamia e a possibilidade de extravasar desejos sexuais. De outro lado, a liberdade completa, sem compromissos, nos alienava – colocando-nos, como na bela metáfora do livro, numa aldeia isolada, afastada de tudo.

​Quando se veem pela primeira vez, Tomas chama a atenção de Teresa porque, num bar, tem um livro aberto sobre sua mesa. Para Teresa, “o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta.” O livro era o ato de resistência contra um mundo de grosseria. Quando vai pela primeira vez ao encontro de Tomas, Teresa carrega apenas um livro, Anna Karenina, de Tolstoi. O livro os uniu.

Essa é apenas mais uma das muitas metáforas de que se vale Kundera. Irônico, ele próprio diz em seu livro: “Não se brinca com as metáforas. O amor pode nascer de uma simples metáfora.”

Em 1985, no Brasil, o primeiro presidente civil, depois de anos de governo militar, assumiu o poder. As Playboys, estampadas com Maria Zilda, Claudia Ohana, Claudia Raia e Adriane Galisteu, ainda apresentavam uma nudez tímida se comparada aos dias de hoje, mas com uma sensualidade pulsante (naquela época, todos sabiam quem estava na capa da Playboy – eis a força do mainstream). A descontração e o sucesso do Rock in Rio fizeram o país dançar naquele ano de 1985. O Brasil queria ser mais leve. Mas isso era sustentável?

Quando, em 1985, o mesmerizante romance de Kundera desembarcou por aqui, todo mundo leu.

A partir daí, todas as questões existenciais, filosóficas, mundanas, humanas (demasiadamente humanas – diria Nietzsche, que é citado na obra várias vezes) passam a ser discutidas pela sociedade. Com isso, ela amadureceu.

Ficamos mais pesados ou ficamos mais leves? Vamos ler A insustentável leveza do ser e… conversar. (De vez em quando, bate uma saudade do mainstream.)

 

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).