Entrou na fase final de testes a infraestrutura tecnológica que pode ser a reforma mais profunda no mercado de crédito empresarial nos últimos anos.

A partir do próximo ano, sai de cena a tradicional duplicata cartular – a duplicata física digitalizada, altamente sujeita a fraudes – e entra em vigor a  duplicata escritural – eletrônica, registrada em bancos de dados credenciados pelo Banco Central e totalmente rastreável.

Haverá um prazo escalonado para a adoção dessa inovação financeira, com a obrigatoriedade de registro recaindo inicialmente sobre as grandes empresas. Mas em breve, todas as duplicatas deverão migrar para o novo sistema, ampliando a transparência e reduzindo a assimetria de informação entre emissores e credores.

Os títulos de recebíveis serão vinculados a uma nota fiscal eletrônica, eliminando riscos como o da duplicidade – o golpe (muito comum) de descontar a mesma duplicata em mais de uma instituição financeira.

O efeito esperado com essa reforma é uma queda dos spreads nas operações de pessoas jurídicas e a ampliação do crédito, porque as empresas terão mais facilidade para repassar adiante as duplicatas dando os recebíveis como garantia e antecipando recursos para usar em suas atividades.

A infraestrutura tecnológica permite que os bancos interessados em adquirir as duplicatas tenham acesso a informações dos emissores, com maior segurança jurídica e operacional. Assim, deverá haver uma maior competição entre os bancos.

“Vejo muita analogia com o que aconteceu no crédito para pessoa física com o consignado,” disse Fernando Fontes, o cofundador da CERC, a primeira empresa a ganhar autorização do BC para atuar no registro de recebíveis de crédito e que tem o Mubadala Capital, a Serasa Experian e a Parallax Ventures entre os sócios.

“O consignado transformou o mercado de crédito pessoal em todas as dimensões. Cerca de 70% do crédito pessoal no Brasil é consignado – e é um crédito com taxas mais baixas, prazos mais longos e limites maiores,” Fontes disse ao Brazil Journal. “Existem duas realidades no País: uma é o crédito com garantia, que é onde está o financiamento do carro, de imóveis e o consignado. E a outra realidade é do cheque especial, do rotativo. São dois patamares distintos.”

A cada ano, são emitidas 5 bilhões de duplicatas, num valor total entre R$ 11 trilhões e R$ 13 trilhões. Deste montante, apenas R$ 3 trilhões hoje são usados como garantia.

A duplicata escritural “não é apenas a versão eletrônica de um título de crédito, é uma mudança estrutural do mercado de crédito PJ, com segurança jurídica e operacional para os agentes financeiros,” disse Fontes.  

Hoje o spread elevado é uma das travas à demanda por financiamento. O crédito ao setor privado representa 76% do PIB no Brasil, contra 103% no Chile e quase 200% nos EUA.

Com o uso das duplicatas escriturais, deverá ocorrer de maneira ainda mais ampla o efeito positivo ocorrido após a regulamentação do registro de recebíveis de cartão de crédito, em 2021.

O saldo no volume de operações de antecipação de recebimentos dobrou, de R$ 50 bilhões para mais de R$ 100 bilhões. Os spreads caíram pela metade, recuando a 10%, e o número de empresas que utilizam esse recurso cresceu cerca de 50%.

Atualmente há um mar de incertezas no mercado de duplicatas, o que impede a alavancagem das empresas. As grandes beneficiadas devem ser as pequenas e médias – que hoje acabam presas às linhas oferecidas pelos bancos com os quais já possuem algum relacionamento.  

“O grande pilar da reforma é a integração ao SPED (Sistema Público de Escrituração Digital). Para descontar uma duplicata será preciso ter um documento fiscal válido,” disse Fontes. “Hoje não tem nada disso no boleto. É caixa 1, caixa 2?  Ninguém entra nesse mérito, porque o boleto é apenas um meio de pagamento. Com a duplicata escritural, podemos olhar se a nota fiscal é válida, se a venda foi realizada de fato, e em que valores e prazos.”

Vai ficar muito mais difícil praticar fraudes. Hoje não existe um sistema integrado, como no caso de veículos e imóveis, impedindo a utilização de uma garantia mais de uma vez.

A lei que cria a duplicata escritural foi aprovada em 2018. O BC foi designado como regulador, e, ao lado das empresas, trabalhou nos últimos anos para criar a infraestrutura que começará a ser testada na prática este mês.

“A escrituração é a certidão de nascimento da duplicata. O registro é a certidão de casamento,” disse Magno Lima, o CEO da SPC Grafeno. “Por que essa analogia é válida? Porque o registro só é feito quando o direito creditório é cedido para um financiador, o famoso desconto da duplicata. Esse mecanismo de desconto, hoje, já é passível de registro, mas a obrigatoriedade hoje vale apenas para o mercado de capitais.”

Inicialmente, a partir do segundo semestre de 2026, a exigência do registro valerá para as companhias de faturamento anual superior a R$ 300 milhões. Na sequência, em meados de 2027, a obrigatoriedade será exigida das empresas médias, e até o final daquele ano todas deverão ter aderido ao sistema.

Será necessário contratar o serviço de uma das certificadoras credenciadas pelo BC. A SPC Grafeno, uma joint venture entre o SPC Brasil e a fintech Grafeno, está entre as empresas certificadas para participar da fase final de testes, ao lado de CERC, Núclea e B3. Outras devem ser autorizadas em breve.

Segundo Lima, hoje são registradas cerca de 8 milhões de operações por mês. Com a duplicata escritural, a projeção é que o número exploda para 450 milhões.

“Devemos ver um crescimento ainda mais acelerado do mercado de capitais, porque ele é o mais flexível para criar produtos financeiros e aproveitar essa onda de inovação,” disse Lima. “Teremos uma democratização do crédito. Hoje as PMEs têm poucos canais de financiamento.”