Nos anos 80, a clínica geral Vera Cordeiro, criadora do departamento de psicossomática do Hospital Federal da Lagoa, no Rio de Janeiro, percebeu que a pobreza extrema em que viviam algumas crianças dificultava a cura das doenças infecciosas e as mantinha em uma rotina de novas internações.
“Eu tratava a pneumonia de uma menina chamada Priscila. Mas a pneumonia era só a ponta do iceberg,” Vera disse ao Brazil Journal.
Para enfrentar aquele iceberg, Vera fundou o Instituto Dara, uma entidade de assistência e empreendedorismo social considerada, ano após ano, uma das melhores ONGs do mundo.
“Por trás daquela pneumonia tinha violência doméstica. Tinha uma moradia na Rocinha que num dia de chuva forte poderia desabar,” diz a Dra. Vera, como ela é mais conhecida. “Essa criança não tinha alimentação adequada e a mãe dela não tinha dinheiro nem para o transporte, quanto mais para pagar a medicação.”
No ano passado, pela décima vez seguida, o Dara foi considerado a melhor ONG do Brasil (e a 21ª no mundo) pela The Dot Good, a organização suíça anteriormente conhecida como NGO Advisor.
O instituto conta há anos com o apoio de duas das principais fundações mundiais de ação social, a Ashoka e a Skoll Foundation, e no ano passado foi um dos selecionados para receber uma doação de MacKenzie Scott, que se reinventou como filantropa depois de seu divórcio de Jeff Bezos.
O reconhecimento do Dara se deve aos ótimos resultados da metodologia de trabalho assistencial desenvolvida por Vera e seus colaboradores. Em vez de se concentrar em um único problema da família em situação de vulnerabilidade, o programa atua em diversas frentes.
A partir de histórias como a de Priscila, Vera compreendeu que o “ato médico não se completava” no atendimento das pessoas carentes. Teria que criar algo diferente, “fora dos muros do hospital,” para de fato ajudar essas pessoas a superar as enfermidades trazidas pela pobreza.
Junto com um grupo de voluntários e inicialmente com recursos próprios, a Dra. Vera iniciou um trabalho de triagem e assistência às famílias mais vulneráveis que passavam pelo hospital público.
O local escolhido – um tanto improvisado no começo – foi a área das antigas cavalariças do Parque Lage, onde já há algum tempo voluntárias costuravam roupas para crianças carentes. O dinheiro saía do bolso dos próprios voluntários, de vaquinhas e até de rifas de objetos que Vera e seus colegas pegavam em casa.
Era o embrião da Associação Saúde Criança, fundada em 1991, e que em 2020 mudou seu nome para Instituto Dara.
Casada com um diretor da IBM e mãe de duas meninas, Vera diz que conhecia bem o que era viver na ‘Belíndia’ carioca – um fosso social aprofundado pelo colapso do ‘milagre econômico’ dos militares.
Nos anos 90, lembra Vera, a tendência entre as organizações sociais era escolher um foco – a fome, a saúde ou a educação. “Mas eu percebi que eu tinha que ficar desfocada,” afirma Vera. “Se você não cuidar da família como um todo, das causas profundas, você faz apenas uma maquiagem da pobreza.”
O trabalho mobiliza advogados, assistentes sociais, arquitetos – e até médicos. Daí nasceu a metodologia do Dara, o Plano de Ação Familiar, que age em cinco frentes: saúde, educação, renda, moradia e cidadania.
O instituto sempre se preocupou em metrificar seus resultados, mas uma consultoria da McKinsey ajudou a aperfeiçoar a metodologia de avaliação. Em 1997, Vera fez uma palestra num evento em Comandatuba e acabou ganhando 5.000 horas de serviços pro bono da McKinsey.
Foi também nesse evento que Vera encontrou um antigo colega de ginásio, André Lara Resende, então presidente do BNDES, e ganhou outro empurrão para a entidade ganhar escala.
“Eu disse para ele, ‘André, preciso de dinheiro. Sou médica e quero acabar com a pobreza no Brasil’,” conta Vera. “O ‘S’ do social do BNDES precisa fazer alguma coisa.”
Lara Resende foi conhecer o trabalho e ajudou na liberação de R$ 500 mil, dinheiro investido na profissionalização da entidade.
Um marco no reconhecimento internacional do instituto veio em 2013. Três pesquisadores da Georgetown University fizeram uma avaliação do impacto de longo prazo das ações, analisando famílias após três e cinco anos de terem concluído o atendimento no Dara, e observaram uma significativa melhora nos indicadores sociais. Os resultados do estudo mereceram um artigo no New York Times.
A análise mostrou um aumento de 92% na renda familiar e uma redução de 86% nas reinternações. O tempo médio de permanência das crianças nos hospitais caiu de 62 dias para 9 dias.
A matrícula escolar dos pequenos avançou de 10% para 92% após as famílias passarem pelo programa, e o percentual de adultos empregados subiu de 54% para 70%. A maioria das famílias passou a ter casa própria.
Esses bons indicadores exigem dedicação, tempo e dinheiro. Tipicamente, o trabalho dura dois anos. A assistência envolve atendimentos periódicos para o acompanhamento das famílias e ajuda financeira para complementar a renda.
O Dara hoje atende 1.600 famílias a um custo médio de R$ 1.200 por família/mês. Ao longo dos anos, 85.000 pessoas já receberam o apoio da entidade.
“O Bolsa Família é importantíssimo, mas nós somos um Bolsa Família com porta de saída,” diz Vera.
Além de ter inspirado uma série de instituições, a metodologia do Dara virou política pública em cidades como Belo Horizonte, no trabalho feito pelos centros de assistência social.
Agora o Programa Ação Familiar começará a ser aplicado em Itu, no interior de São Paulo. Um projeto-piloto com 60 famílias começou no início de setembro.
O trabalho, que envolverá a ação conjunta de cinco secretarias, faz parte do Programa Cuidar Itu, recentemente transformado em lei pela Câmara de Vereadores.
O programa terá a consultoria e acompanhamento do Instituto Tecendo Infâncias, a entidade filantrópica criada no ano passado por Adriano Schincariol ao lado da mulher e dos filhos. A família buscou auxílio na experiência e nos conhecimentos do Dara.
“A miséria em Itu não é tão presente como em outras regiões, mas existem áreas onde há famílias em situação de grande vulnerabilidade,” diz Adriane Menna Barreto, que já trabalhou no Dara e agora é diretora-executiva do Tecendo Infâncias. “São pessoas que às vezes têm vergonha de entrar em um centro de atendimento público e não sabem que têm direito aos serviços sociais.”
Como diz Vera, a pobreza não resulta simplesmente da ausência de dinheiro. A pobreza “é multidimensional. É a ausência de dignidade, de autoestima, é a ausência de harmonia familiar e psicológica.”
Dra. Vera trabalhou de 1975 a 1998 no Hospital da Lagoa. Hoje, aos 73 anos, preside o conselho de administração do Dara e dá consultorias, como a feita agora em Itu – além de continuar pedindo contribuições, como tem feito há três décadas, em sua luta contra o iceberg da pobreza.
LEVANTE DO SOFÁ