SINTRA, Portugal – Hoje com 97 anos, o engenheiro Renato de Albuquerque criou os condomínios fechados de Alphaville e inúmeros outros empreendimentos imobiliários – tudo enquanto colecionava porcelana chinesa, incluindo cerâmicas das dinastias Ming (1368–1644) e Qing (1644–1911).
Nos anos 90, passando longas temporadas em Portugal, o empresário construiu o Beloura (um bairro inspirado em Alphaville) aqui em Sintra, e comprou a Quinta de São João, que ficava ao lado do novo empreendimento.
Agora, essa antiga residência de férias da família Albuquerque acaba de ser transformada numa nova instituição cultural, uma fundação que abriga uma das maiores coleções de cerâmica do mundo.
A Quinta foi reformada pelo arquiteto Thiago Bernardes (com presença crescente em Portugal) para fazer a ponte entre o antigo e o contemporâneo. Ao lado da casa principal, totalmente preservada, Bernardes ergueu um pavilhão, com uma escada circular que leva a uma área subterrânea de mais de 2.000 metros quadrados, onde estão galerias expositivas e salas de reservas.
No jardim inferior, outro pavilhão abriga exposições contemporâneas, que farão conexões com a coleção.
A inauguração da Fundação é parte da ebulição que tem tomado conta de Lisboa, começando pelo setor imobiliário, hoteleiro e gastronômico, e chegando agora à cena cultural.
Em setembro, o Centro de Arte Moderna Gulbenkian, desenhado pelo arquiteto japonês Kengo Kuma, abriu seu novo prédio no centro de Lisboa – que em abril receberá uma mega exposição de Adriana Varejão e Paula Rego.
Albuquerque começou a comprar arte brasileira dos séculos XIX e XX, mas na década de 80, durante um período de muitas viagens a Londres, adquiriu porcelanas de Meissen (a primeira fábrica da Europa), suas primeiras aquisições de cerâmica. O material passou a ser objeto de pesquisa e desejo.
Hoje são mais de 2.600 peças, a maior parte de porcelana chinesa de exportação, principalmente dos períodos Ming e Qing. A coleção evoluiu para outros campos conectados, como porcelanas chinesas feitas para o consumo interno, imperial e doméstico em geral, e obras de arte da África, Índia, Sri Lanka, China e Japão, abrangendo um período de mais de 1.800 anos.
Conhecida como ‘ouro branco’, a porcelana chinesa começou a circular pela Rota da Seda há mais de mil anos e, a partir do século XVI, era feita em grande parte para exportação, para atender os mercados europeu e asiático.
Naquela época, a cerâmica na Europa estava muito atrás da chinesa. Portugal foi o primeiro país a comprar e encomendar cerâmicas para uso real.
“Há 60 anos fui contaminado pela doença conhecida como maladie de porcelaine. Uma paixão que seguiu crescendo, assim como a coleção,” Renato disse por e-mail ao Brazil Journal.
A referência à doença da porcelana remete a um folclore que envolve o príncipe saxão Auguste Forte, no início do século XVIII. Inconformado que a Europa não conseguia produzir porcelanas à altura da China, ele teria aprisionado um cientista até que ele descobrisse a fórmula secreta.
Foram mais de 200 anos tentando descobrir o processo de fabricação, considerado um segredo de Estado na China. A loucura de Auguste vingou, e ele fundou a manufactura Meissen, a primeira fábrica de porcelana de alto padrão na Europa. Rapidamente, outros países europeus seguiram seus passos e a cerâmica se popularizou, deixando de ser um bem raro, caro e colecionável para entrar no cotidiano das famílias.
Paralelamente à coleção, Albuquerque montou uma biblioteca de mais de 1600 volumes. A maioria está à disposição dos visitantes da Fundação; os volumes mais raros podem ser consultados com horário marcado.
O projeto saiu do papel graças ao apoio e dedicação da neta de Albuquerque, Mariana Teixeira de Carvalho. Co-fundadora, Mariana já trabalhou em galerias como a inglesa Hauser & Wirth e na Luisa Strina, trazendo sua experiência contemporânea para dialogar com a história milenar da coleção do avô.
Mariana me disse que sua ideia é criar conexões com a história da porcelana, seu valor artístico e geopolítico, com o público não especialista, que é a maioria hoje em dia.
A primeira exposição do pavilhão contemporâneo é do americano Theaster Gates, que usa porcelana em sua pesquisa, e teve o apoio da galeria White Cube.
“A cerâmica passa a ter um espaço próprio em Portugal, país fundamental em sua história. Preservamos uma coleção que atravessa séculos, mas também olhamos para o futuro, dando voz aos artistas que seguem transformando esse material,” disse Mariana.
Terminada a visita, vale uma parada na loja com curadoria da designer brasileira Dedé Bevilaqua – que selecionou cerâmicas de artistas portugueses como Vania R Gonçalves e o estúdio de design Ther – e degustar os (deliciosos) doces portugueses do café.