A pandemia de coronavírus forçou Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier a receberem virtualmente o Prêmio Nobel de Química de 2020, em vez de participarem da cerimônia anual que a Real Academia Sueca de Ciências realiza sempre em dezembro no Concert Hall de Estocolmo, na qual o rei da Suécia, Carl XVI Gustaf, teria entregue uma medalha de ouro 18 quilates para cada uma, além de parabenizá-las com um aperto de mãos. O evento deste ano, como tantos outros em todo o mundo, foi cancelado pela primeira vez em décadas.

11377 8f715961 d5e0 652d 4802 1288f2d43bc8A pesquisa que levou Doudna e Charpentier ao topo do reconhecimento mundial é um divisor de águas com o potencial de controlar futuras pandemias ─ seja derrotando a próxima peste viral por meio de testes e tratamentos mais eficientes, seja usando a engenharia genética para que nossas células estejam mais bem preparadas para resistir a doenças.

A técnica de edição de genes patenteada pelas cientistas, batizada com o desajeitado nome CRISPR-Cas9, possibilita cortar e alterar seletivamente trechos de DNA como se subíssemos a bainha de uma calça ou ajustássemos o tamanho da cintura. O método se baseia nas defesas desenvolvidas inicialmente pelas bactérias em sua guerra imemorial contra os vírus.

Doudna e Charpentier ─ uma, americana, a outra, francesa ─ são a sexta e a sétima mulheres a ganhar o Nobel de Química em sua história de mais de cem anos (Marie Curie foi a primeira em 1911, seguida por sua filha Irène, em 1935). Os nomes Doudna e Charpentier já tinham aparecido juntos, de forma notável, em 2015, quando ganharam os três milhões de dólares do Breakthrough Prize na categoria Ciências da Vida; e em 2018, quando conquistaram o cobiçado Prêmio Kavli, na Noruega. Embora nunca tenham trabalhado na mesma instituição de pesquisa, as duas formaram uma parceria de sucesso entre si e com vários colegas de diversos países ao criar uma relação baseada em interesses comuns, camaradagem e competição.

A história do CRISPR tem um apelo óbvio para Walter Isaacson, biógrafo de Albert Einstein, Benjamin Franklin, Steve Jobs e Leonardo da Vinci. Em “A decodificadora” (Editora Intrínseca, 505 páginas, R$ 79,90), ele revisita diversos temas com que já havia trabalhado ─ ciência, genialidade, experimentação, códigos, pessoas que pensam diferente ─ e pela primeira vez dedica um livro inteiro a um personagem feminino.

Jennifer Doudna, uma verdadeira heroína de nossos tempos, pode ser a decodificadora que dá título ao livro, mas ela é apenas parte da história de Isaacson. O subtítulo promete uma abordagem mais ampla: Jennifer Doudna, edição de genes e o futuro da espécie humana.

Talvez a frase pareça uma hipérbole editorial, mas fato é que Isaacson dedica-se a uma angustiada discussão sobre ética na edição de genes, especialmente no caso das edições de “linha germinativa” – aquelas podem ser repassadas para gerações seguintes – e dos “aprimoramentos” – como olhos verdes e QI mais elevado –  que futuros pais poderiam inserir no genoma de seus filhos.

A expressão “decodificador” também descreve o próprio CRISPR, que corta a fita dupla da molécula de DNA onde se encontra o código genético.

A decodificadora apresenta Doudna em uma noite de insônia no início de março do ano passado, pouco antes de lockdown se tornar uma palavra corriqueira. Ela e o marido, o geneticista de Berkeley Jamie Cate, estão indo de carro até Fresno resgatar o filho adolescente, Andy, que ia participar de uma competição de robótica marcada para começar naquele dia. Aquelas horas de reflexão foram tempo suficiente para Doudna questionar a prudência de deixar Andy com mais de mil outros adolescentes dentro de um centro de convenções fechado, tendo em vista o espectro da incipiente epidemia. Andy, compreensivelmente, não fica muito feliz de ver os pais voltando tão cedo, mas, enquanto a família está retornando para casa, ele recebe uma mensagem de texto com a informação de que a competição foi cancelada. Todos os colegas de Andy, entusiastas de robótica de escolas de ensino médio de todo o estado, também precisam deixar o local imediatamente.

11378 2b638a68 2abe 30b2 9f60 51654bdb004aÉ um bom ponto para começar a história porque, em certo sentido, A decodificadora é uma espécie de diário do ano da peste que vivemos em 2020. Quando chegamos ao capítulo final, Isaacson se voluntariou para testar uma vacina. Entre a frenética viagem da protagonista do livro e o momento em que o autor oferece o braço, há tempo para explorar a infância de Doudna, acompanhar sua carreira, conhecer seus concorrentes e colaboradores, temer o futuro da revolução do CRISPR e admirar seu potencial positivo.

Felizmente para Doudna, sua leitura precoce de “A dupla hélice,” de James Watson, revelou ter um caráter formativo. Ela passou rapidamente pelos comentários sarcásticos de Watson sobre a aparência da bióloga estrutural Rosalind Franklin e captou uma mensagem mais importante: Franklin era uma mulher cientista; desse modo, Jennifer Doudna também poderia ser. Ecos dessas palavras encorajadoras emanam das páginas de A decodificadora, assim como do livro da própria Doudna, “A Crack in Creation,” escrito com seu ex-aluno Samuel Sternberg e publicado em 2017. O subtítulo, “Edição genética e o impensável poder de controlar a evolução” (Gene editing and the unthinkable power to control evolution) reflete com sobriedade o respeito pelo resultado de anos de esforços.

A decodificadora é um belo livro, com fotos coloridas distribuídas generosamente ao longo das páginas. Ao mesmo tempo em que as imagens reforçam o relato, o fluxo da narrativa é constantemente interrompido por subtítulos e recuos. É difícil passar duas páginas sem intervenções como essas, como se o livro advertisse o leitor a prestar atenção.

Experiente, Isaacson tem firmeza nas explicações científicas, habilidade que dominou por meio de extensas leituras e entrevistas, que aparecem sempre em notas de rodapé. Em um capítulo chamado “Aprendo a editar”, ele testa o próprio desempenho usando o CRISPR para editar DNA humano, orientado por especialistas da equipe de Doudna.

A maior parte dos trechos em que Isaacson aparece na primeira pessoa em A decodificadora – e são muitos – demonstram sua diligência como repórter. Ele participa de conferências científicas, visita laboratórios, consulta especialistas de ambos os lados quando há disputas em jogo e chega a mediar um importante telefonema entre duas personalidades do campo da ciência. No entanto, nota-se um certo ar de grupinho fechado em algumas dessas referências, como quando o biógrafo cita os nomes de restaurantes onde conversas importantes acontecem, chegando a incluir, em um dos casos, os pontos altos do cardápio:

“Quando o primeiro dia de apresentações termina, Doudna e Sternberg vão a um restaurante casual em Old Quebec City, mas aceito um convite de Feng Zhang para jantar, juntamente com um pequeno grupo de amigos dele. Não só quero ouvir seu ponto de vista, como também quero conhecer o novo e inventivo restaurante que ele escolheu, o Chez Boulay, cujo cardápio tem almôndegas crocantes de foca, imensas vieiras cruas, truta-do-ártico, bisão bem-passado e morcela com repolho.”

Alguns dos trechos mais empolgantes de A decodificadora detalham o modo como os pesquisadores do CRISPR reagiram ao desafio da Covid-19: desenvolvendo procedimentos de testagem rápida e estratégias de vacina – e publicando essas descobertas em um banco de dados aberto, para uso de toda a comunidade científica, permitindo que o progresso acontecesse muito mais rápido.

Há desafios consideráveis ao escrever um livro sobre um campo científico em desenvolvimento. Apesar de todo o cuidado de Isaacson, sem mencionar o timing perfeito da escolha para o Nobel, o epílogo de A decodificadora contrasta tristemente com nossa atual realidade. Aproveitando um dia bonito no outono do ano passado, sentado em sua varanda no French Quarter de Nova Orleans, Isaacson diz que pode “ouvir música de novo nas ruas e sentir o cheiro de camarão vindo do restaurante da esquina”. Ele não tinha como saber que o inimigo se espalharia e passaria por uma mutação até a data de publicação do livro, tornando-se ainda mais contagioso do que antes, embora suspeitasse que isso poderia acontecer.

Refletindo sobre a natureza da pesquisa científica, Isaacson deixa que Emmanuelle Charpentier fique com a penúltima palavra: “No fim das contas”, ela diz, “as descobertas são o que permanece. Estamos passando por este planeta por um curto período de tempo. Fazemos nosso trabalho, partimos e outros virão para continuá-lo.”

Dava Sobel é autora de “Longitude”, “A filha de Galileu” e “The Glass Universe.”

Este artigo foi publicado pelo The New York Times e licenciado pelo Brazil Journal.

A tradução impecável é de Rogerio W. Galindo, que também traduziu o livro.