Nos anos 50, o poderoso Assis Chateaubriand chega em Porto Alegre tarde da noite, vai ao prédio da Companhia Jornalística Caldas Júnior e diz ao dono do grupo, Breno Caldas: “Quero comprar o Correio do Povo!”
Sem se abalar, Breno olha para o relógio e responde: “A essa hora, acho que tu só encontras na banca da Praça da Alfândega!”
Anos depois, após uma greve que paralisou a redação da Folha da Manhã – outro dos três jornais da Caldas Júnior – Breno recebe em sua sala o chefe de redação, que, insatisfeito com as decisões do comando da empresa, lhe diz: “Meu cargo está à sua disposição.”
Novamente sem se abalar, Breno responde: “Sempre esteve!”
Essas duas anedotas dão bem a dimensão do mais longevo e poderoso barão da imprensa do Rio Grande do Sul, um homem de humor ácido, arrogância que beirava o orgulho e que sabia exercer seu poder.
Durante cinco décadas, esse foi o cotidiano de Breno Alcaraz Caldas, que nasceu em Porto Alegre em 1910 e, à frente da empresa que herdou, ajudou a pautar a política e a economia do Rio Grande do Sul.
Este personagem, multifacetado e fascinante, emerge de Breno Caldas – A Imprensa e a Lenda (Editora Age, 384 páginas), do jornalista Tibério Vargas Ramos, um ex-funcionário da Caldas Jr. que conheceu bem o empresário mítico.
Surgido na década final do século 19, o Correio do Povo nascera com a intenção de ser uma voz liberal e equilibrada no meio das acirradas disputas políticas gaúchas.
Era comandado por Caldas Jr., um sergipano que veio ainda criança para o Rio Grande do Sul, onde exerceu o jornalismo e alimentou veleidades literárias. O jornal deixava claro, logo no primeiro editorial, seu objetivo maior: “Ser feito para toda a massa, não para determinados indivíduos de uma facção”.
O tom equilibrado e a posição equidistante na política permitiram ao jornal dedicar-se também à inovação. Uma das principais foi a valorização de um quadro próprio de jornalistas profissionais, desestimulando colaboradores que tivessem outra fonte de renda.
Muitas destas modificações traziam a digital de Breno, filho do fundador e comandante do jornal a partir de 1935 (seu pai havia morrido prematuramente aos 44 anos, em 1913, quando aceitou servir como cobaia de uma vacina inventada na Alemanha que supostamente tinha a capacidade de purificar o sangue).
Já sob o comando de Breno, o grupo lançou também uma rádio, a Guaíba, focada em jornalismo e esportes, e outros dois jornais, o vespertino Folha da Tarde, em 1936, e a Folha da Manhã, em 1969.
Amparado nessa rede, Breno Caldas criou o mais poderoso império de comunicação da época fora do eixo Rio-São Paulo. Sua rádio era líder de audiência, seus jornais eram respeitados, e seu gabinete, no primeiro andar do prédio da empresa, era passagem obrigatória de empresários, governadores, bispos, militares e parlamentares.
Aos mais íntimos, Breno reservava mais tempo e maior atenção, convidando-os para longos churrascos no Haras do Arado – sua ampla propriedade a 35 quilômetros do centro de Porto Alegre. Era ali que Breno dava o tom político ao seu poder empresarial, costurando acordos e influindo em decisões.
A partir do começo da década de 60, ele seria ainda mais ativo, conspirando contra João Goulart, apoiando o golpe de 64 desde o primeiro minuto – e os presidentes do regime militar, a maior parte com vínculos gaúchos.
A opinião do empresário pesava – e muito – na escolha dos governadores, à época escolhidos por Brasília. E foi num desses conchavos que começou a derrocada de Breno e da Caldas Júnior.
Consultado pelos militares, num almoço em sua homenagem no QG do III Exército, Breno se opôs ao nome do então vice-governador da Arena, José Augusto Amaral de Souza, o Amaralzinho (conhecido assim por sua baixa estatura), dizendo que faltava ao candidato “o nível necessário”. E completou: “Falta-lhe pelo menos um palmo e meio! Em todos os sentidos! Físico, pessoal e moral”.
Mesmo com o veto, Amaral de Souza ganhou – e guardou seu ressentimento na geladeira até tomar posse.
Uma vez com a caneta na mão, colocou a máquina contra o empresário. Rompidos, começaram uma briga pública. Breno usava os editoriais para fustigar o governador. Enquanto isso, a dívida do grupo crescia com os enormes gastos (em dólar!) para a implantação de um canal, a TV Guaíba, inaugurada em 1979.
Este talvez tenha sido o último e mais soberbo gesto público do barão da imprensa gaúcha.
Roberto Marinho – de quem Breno era amigo e com quem regulava em idade e em trajetória profissional (ambos assumiram jornais herdados de pais mortos precocemente) – procurou-o com a seguinte proposta: “Você me dá US$ 600 mil e eu te monto uma estação de televisão em Porto Alegre.”
Embutida na oferta estava ainda a proposta de trocar as lealdades da Rede Globo no Rio Grande do Sul.
Se fosse aceita, a ideia mudaria completamente a situação do mercado jornalístico local, fortalecendo Breno ainda mais e enfraquecendo a RBS de Maurício Sirotsky, sócio de Roberto Marinho desde os anos 60.
Mas Breno recusou, dizendo que Marinho queria criar o canal dele, enquanto ele queria uma TV sua, uma emissora em que ele tivesse o controle total do negócio.
Era o início do fim da Caldas Júnior.
Atolado em dívidas, abandonado por Brasília – em especial pelos ministros Leitão de Abreu e Delfim Netto, de quem guardou mágoas – Breno se viu completamente isolado pelo núcleo de poder do qual durante quase duas décadas havia sido um dos maiores defensores.
Era um “revolucionário” de primeira hora, mas fez muitos inimigos pela postura imperial, por não ser “inteiramente confiável” e por seu “excesso de independência,” como lhe garantiu um general seu amigo.
Assim, quebrá-lo atendia a muitos interesses e servia ainda de pretexto para grandes e pequenas vinganças
Quando, há 40 anos, o Correio do Povo e a Folha da Tarde deixaram de circular – notícia só crível por ter sido veiculada pela Rádio Guaíba – Breno Caldas já era um pálido retrato do outrora fazedor de reis.
Já estava longe de ser o dono de um jornal que tinha amplo e reconhecido espaço publicitário e mais de 90 mil assinantes, o que fez dele um dos dez empresários mais ricos do país. No imenso ralo em que se viu tragado, chegou a perder US$ 35 milhões em 24 horas – resultado de uma máxi desvalorização sobre a qual ninguém em Brasília o alertara.
Em 1986, Breno Caldas aceitou uma proposta e vendeu tudo: os três jornais, as duas rádios e a TV.
Quanto recebeu? “Eu? Nada!” confessou ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado numa entrevista em 1987. “Ele assumiu a dívida e eu pedi a ele apenas que me liberasse dos credores esta propriedade aqui,” disse, referindo-se aos 400 hectares do Arado, onde sempre morou.
Pelo simbolismo, Breno Caldas pediu também para levar uma máquina de escrever elétrica, já antiga e em desuso. “Achei que não ia ser de utilidade para o novo proprietário,” disse na mesma entrevista.
Até morrer em setembro de 1989, aos 79 anos, Breno passou os últimos dias recolhido no Arado. Recebia poucas visitas.
Porto Alegre, a cidade onde viveu e reinou por cinco décadas, também o esqueceu. Seu nome batiza apenas uma pequena praça num bairro periférico.
“Ninguém está interessado nas desculpas de um falido,” disse na célebre entrevista.
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