LYON, França — Paul Bocuse, o grande chefe de cozinha que reinventou a gastronomia tradicional a partir de sua cidade natal abrindo caminho para discípulos em todo o mundo, morreu neste sábado na mesma casa onde nasceu, nos arredores de Lyon. Tinha 91 anos e sofria do Mal de Parkinson.
“Monsieur Paul”, como era conhecido aqui, era dono de três estrelas no Guia Michelin desde 1965 — sans interruption. A primeira estrela veio em 1961, a segunda, em 1962 e a terceira, em 1965, transformando-se a partir dali no primeiro grande cozinheiro de sua geração.
O grande embaixador da gastronomia francesa foi o precursor da ‘nouvelle cuisine’, a escola gastronômica que modernizou a forma de cozinhar e servir a partir dos anos 1970.
“Os chefes choram em suas cozinhas, no Elysée e por toda a França,” disse o presidente francês, Emmanuel Macron, enquanto, ao redor do planeta, chefs lamentavam a morte do mestre nas redes sociais.
Bocuse reinventou a culinária francesa propondo ingredientes mais frescos — encontrados no mercado no mesmo dia — molhos mais leves e inovação constante. Para ele, era preciso diminuir a quantidade dos três ingredientes primordiais da cozinha francesa — manteiga, creme e vinho — e voltar aos sabores essenciais. “Os pratos em Lyon estavam cheios de molhos, não se viam mais as carnes,” disse ele em inúmeros depoimentos.
Com o tempo, o nome Bocuse passou a se confundir com a cidade de Lyon e a própria França. Seu império é composto de quase vinte restaurantes em Lyon, na Suíça, no Japão e em Nova York.
Bocuse compreendeu desde cedo que a gastronomia poderia se transformar numa marca francesa, e parte do patrimônio do País. A imprensa francesa disse neste sábado que desde François Vatel, o chef de Louis XIV, nunca houve um nome tão representativo da gastronomia francesa quanto Bocuse. Seu sucesso abriu caminho para os Ducasse, Robuchon, Savoy e outros.
“Uma cozinha sem emoção desaparece rapidamente de sua memória,” Bocuse disse certa vez. “A cozinha tradicional é a chave para manter-se sempre com as estrelas num guia. E para mim só existe uma cozinha: a boa! Além, é claro, da qualidade do trabalho. Toda manhã é um novo combate. Manter uma equipe motivada também é muito importante.”
Paul Bocuse nasceu em 11 de fevereiro de 1926, em Collonges-au-Mont-d’Or, um vilarejo 10 quilômetros ao norte de Lyon, a terceira maior cidade da França. Era o único filho de Georges e Irma Bocuse, ambos de famílias atuantes na gastronomia desde o século XVIII. Seu pai trabalhou em cozinhas diversas antes de assumir o estabelecimento do sogro situado no Auberge Du Pont de Collonges, que ainda hoje abriga o restaurante da família.
Bocuse, le fils, aprendeu muito com a Mère Brazier, uma das muitas senhoras que mantinham bistrôs caseiros (‘bouchons‘) na região de Lyon. Em seguida, passou por diversas cozinhas em Lyon e Paris e trabalhou com o lendário Fernand Point no três estrelas La Pyramide, antes de abrir seu próprio restaurante.
Bocuse dormia no mesmo quarto em que nasceu, no andar de cima do restaurante. O pequeno Paul cozinhou pela primeira vez aos oito anos: um de seus primeiros sucessos foi preparar um rim ao molho madeira. (A gastronomia de Lyon se apoia em pratos da época dos romanos, portanto coração de boi, tripas e rins são comuns nos cardápios.) Quando pequeno, seu pai lhe ensinou a pescar num dos rios que cortam Lyon, o Saône. O talento para a pesca lhe salvou a vida durante a Segunda Guerra, quando não havia mais nada para comer na França. Até hoje, seus restaurantes são pródigos em peixes nos menus.
Bocuse, que colocou três pontes de safena em 2004, parou de cozinhar aos 80 anos, mas sua cozinha perpetua suas invenções, como a sopa de trufas negras VGE 1975 (em homenagem ao ex-presidente francês Valérie Giscard D’Estaing), feita com caldo de carne, trufas negras, vinho branco, foie gras, cenoura, cebola, salsão, carne cortada em pedaços finíssimos, pitadas de sal marinho e pimenta-do-reino. O grande toque que define a sopa é a crosta de massa folhada que preserva o calor e os aromas.
Também inventou outras delícias como o foie gras de pato ao Porto Antonin Carème, a salada de lagosta à francesa, o robalo envelopado em massa folhada, e a lagostinha de água doce ao vinho Pouilly-Fuissé.