Em fins de 1998, quando chegava ao final de seu mandato de deputado federal, Roberto Campos deu um depoimento à revista Inteligência.  Nele, fez uma avaliação crítica do Congresso e do Executivo, focando nas limitações do primeiro e nas obrigações do segundo. 

 
O depoimento agora reaparece na coletânea “No Calor das Ideias – Breviário do Bem Pensar – Volume 1” (Insight Comunicação, 452 páginas), numa época em que a relação Executivo-Legislativo é testada pela inexperiência do primeiro e a renovação do segundo. (O e-book é gratuito e você pode baixar aqui.)
 
 Abaixo, um excerto com a lucidez de sempre.
 
 
A súmula da experiência parlamentar, pelo menos vista da minha óptica, é que chegamos ao Congresso com uma enorme esperança de fazer o bem e saímos satisfeitos por não ter feito o mal.
 
No meu caso, exerci mais uma função de inseminação de ideias e pregação. Nunca tive a paciência miúda necessária à articulação política, a conversa de bastidores. Mas eu acho que essa função de pregação, de preservação de racionalidade ideológica, de resistência à demagogia eleitoreira e ao oportunismo é importante. Outros têm mais vocação operatriz. Isto consome muito tempo, exige grande tolerância e quase que uma renúncia cultural, porque o sujeito fica sem tempo para a grande meditação. Eu preferi a linha da meditação e do apostolado. O saldo líquido foi positivo. Mas é muito grande a frustração. 

No meu caso, verifiquei que a minha capacidade de previsão e percepção é muito superior à capacidade de persuasão. Há políticos bem-sucedidos, que enquanto incapazes de prever e extremamente capazes de repetir erros, têm uma infinita capacidade de convencimento.

O triste é verificar que o cidadão pode fazer apostas erradas, repeti-las e ainda ter sucesso político. Mas, tendo vivido uma experiência longa no Executivo e uma igualmente ampla no Legislativo, posso afirmar que ambas são dolorosas porque são sempre, de alguma forma, frustrantes.
 
Eu acho que a liderança numa economia moderna tem que ser principalmente do Executivo, porque ele não tem que dar respostas distributivistas imediatas. O Executivo, uma vez eleito, não tem que fazer o atendimento miúdo ao desejo dos eleitores e, portanto, pode ter uma preocupação produtivista muito mais forte do que a distributivista, que é inerente aos Parlamentos. A economia hoje exige legislações muito específicas e com padrões complexos, e os Parlamentos em geral não têm munição técnica suficiente para exercer iniciativas legislativas. Então eu acho que o dinamismo e a criatividade têm que vir principalmente do Executivo, ficando o Legislativo com a função de aperfeiçoamento, crítica, aprovação ou rejeição. 
 
Mas é difícil visualizar um Parlamento rico de iniciativas. Os Parlamentos tendem a ser em geral reativos. Esse grau de reatividade é que varia muito. No nosso caso, a reatividade é baixa. O nosso Congresso não é ativo e é apenas timidamente reativo. O Congresso americano, por exemplo, é bem mais reativo. 
 
Uma outra consideração é que o Executivo pensa nacionalmente, enquanto o Congresso pensa regionalmente.

Quando afirmam que o Legislativo é burro, eu discordo. Acho muito radical. O Congresso tem algumas ilhas de sensatez. O nível intelectual médio não é lá muito elevado. 

O que contribuiu bastante para a não elevação do nível intelectual em dissonância com o desenvolvimento econômico do país é a capital ter ido para Brasília. A localização do Congresso foi um sério desincentivo à melhoria de qualidade do Legislativo. Muita gente que poderia ingressar com prazer e prestar nobres serviços ao Legislativo se apavora com a ideia de se deslocar dos grandes centros para Brasília. E Brasília não tem as justificativas que em outros países levaram à construção de capitais artificiais. 

No caso americano, a explicação é simplesmente a enorme rivalidade entre Filadélfia e Nova York. Pode-se dizer que Washington é o desempate entre dois centros políticos. O mesmo ocorre com a Austrália, onde havia o problema entre Sydney e Melbourne. Na Turquia, o motivo era diferente: a capital estava a poucos quilômetros de um inimigo tradicional, a Grécia, e, portanto, era considerada militarmente vulnerável. No Brasil, onde nenhuma dessas condições prevalecia, Brasília foi realmente uma capital estritamente artificial.
 
Mesmo a ideia de não ter uma capital na costa com receio de bombardeios marítimos era superada, pois Brasília foi construída numa época em que a guerra naval tinha se tornado obsoleta, num tempo em que as agressões já se davam por aviões e mísseis. Eu não cheguei a participar do movimento iniciado por Roberto Marinho para trazer a capital para o Rio de Janeiro. Aceitava intelectualmente a ideia, mas não a considerava factível, porque há um enorme investimento em estrutura física realizado em Brasília. Existem interesses políticos consolidados. O Norte e o Nordeste certamente preferem Brasília a qualquer outra solução. E não há em São Paulo qualquer entusiasmo em relação à volta da capital ao Rio.

O Congresso é uma casa de anacronismos e imperfeições. Os obstáculos regimentais são grandes e criaram barreiras ilógicas, notadamente no tocante às emendas constitucionais. Esses estranhos impeditivos acabaram resultando na Constituição de 1988, que teve uma construção esquisita. Na sua barganha inicial, havia um desequilíbrio político, que se iniciou em 1986, quando o PMDB, graças ao chamado “estelionato eleitoral”, ficou com a maioria absoluta no Congresso, tanto na Câmara quanto no Senado Federal, elegendo 22 governadores.
 
Havia, portanto, absoluta predominância de um único partido, o PMDB. E o PMDB é um “partido omnibus”, com linhas conservadoras minoritárias, linhas centristas e linhas ativistas de esquerda. O segundo partido ficou sendo o PFL (atual DEM), que fez a sua cisão em relação ao PDS. Na montagem das chamadas comissões temáticas, que produziam textos para ir à comissão de sistematização e depois ao plenário, se deu uma coisa interessante: o PMDB ficou com as relatorias e o PFL ficou com as presidências. Com isso conseguiu-se, aliás, ao nível das comissões temáticas, fazer textos relativamente conservadores. Na comissão de sistematização quem predominavam eram os relatores e não os presidentes. Então houve uma esquerdização ao nível da comissão de sistematização, ou seja, alguns textos econômicos relativamente conservadores produzidos nas comissões temáticas sofreram um expurgo, adquirindo um viés de esquerda.

Ocorreu uma intensa mobilização contra isso. Criou-se na época o Centrão e conseguiu-se um regimento defensivo para as minorias. O Centrão era uma minoria que se tornou episodicamente aguerrida. Isso consistia em criar obstáculos à manutenção do texto constitucional, porque o texto feito na comissão de sistematização teria que ir ao plenário. A ideia das oposições era dificultar a aprovação daquele texto no plenário. O que se fez então: conseguiu-se aprovar uma regra segundo a qual, apresentado um texto constitucional, sua manutenção exigiria três quintos de votos. 
 
Logicamente, deveria ser o contrário: três quintos de votos deveriam ser para rejeitar um texto. Mas isso interessava naquela ocasião ao pensamento conservador então minoritário. Foi assim que se conseguiram empate e revogação, no plenário, de certos dispositivos socializantes, intervencionistas, monopolistas, aprovados na comissão de sistematização. Isso fez com que a Constituição fosse menos socializante e um pouco menos intervencionista e dirigista do que seria. O curioso é que esse mesmo expediente, que serviu ao pensamento conservador, está funcionando ao contrário agora, quando a oposição de esquerda deseja dificultar emendas constitucionais fazendo com que a manutenção de cada texto impugnado exija dois quintos. É totalmente irracional.
O Congresso transita também no fio da navalha de um certo hibridismo entre o parlamentarismo e o presidencialismo. São coisas da esquisitice da construção da Constituição de 1988. O texto original da Constituição tinha um viés parlamentarista. Quando chegou na comissão de sistematização se deu uma coisa curiosa: houve uma movimentação de esquerda para afirmar o dirigismo e o intervencionismo e uma movimentação governamental para reverter o viés parlamentarista. 
 
Então ficou uma Constituição híbrida, entre o parlamentarismo e o presidencialismo.