A história da Odebrecht já foi relatada e delatada aos quatro ventos e por vários de seus protagonistas, repórteres e comentaristas. Agora, a jornalista Malu Gaspar está lançando o que pretende ser o livro definitivo sobre o assunto.
“A Organização” (Companhia das Letras) é um paralelepípedo-reportagem de 640 páginas que mostra bastidores inéditos da companhia, a investigação de seus crimes e a guerra chocante entre pai e filho pelo controle do que restou da companhia.
O livro chega num momento em que a tinta da história ainda não secou na Lava Jato, que deu uma contribuição inestimável ao País ao mesmo tempo em que cometeu excessos e produziu efeitos colaterais que redesenharam a paisagem corporativa brasileira.
Neste capítulo da nossa história, a Odebrecht entrou gigante e saiu pulverizada. O que antes chegou a ser celebrado como um ‘modelo de gestão’ tornou-se sinônimo do que não fazer. “A Organização” documenta essa ascensão e queda, e nos ajuda a lembrar que alguns atalhos podem ser fatais.
Abaixo, dois excertos do livro.
O ambiente delirante da campanha não contaminava apenas os políticos, executivos e marqueteiros. No Departamento de Operações Estruturadas, os efeitos da eleição também se faziam sentir. O pequeno grupo de executivos era cada vez mais requisitado. Se por um lado sentiam-se poderosos, andavam angustiados. O Antigua Overseas Bank, ou aob, em que trabalhavam seus parceiros Marco Bilinski, Vinicius Borin e Luiz França, havia acabado de quebrar.
Desde que Hilberto Silva recrutara Olívio Rodrigues para prestar serviços exclusivos como testa de ferro, o aob havia sido o canal preferencial para lavar o dinheiro. Pelo banco, cujo quartel-general ficava numa rua pacata e sem charme da pequena e ensolarada St. John’s, capital da ilha caribenha de Antígua, haviam passado mais de 1 bilhão de dólares desde 2006. O dinheiro vinha de contas como a da Klienfeld Services, Fastracker Global Trading, Trident e Fincastle Enterprises, que pertenciam à quarta camada de offshores, e delas seguia para as contas dos beneficiários finais dos pagamentos. Graças à Odebrecht, a aobvivera uma era de prosperidade. Mas a incúria dos controladores empurrou a instituição para o buraco. Quando perceberam que o banco estava para quebrar e poderia sofrer intervenção, França e Bilinski se mudaram para Antígua e lá ficaram por quase um ano, numa intervenção comandada pelo setor de propinas. Retirando o que podiam e enviando para o panamenho Credicorp, conseguiram salvar a maior parte do dinheiro. Não tudo, porém. Quando o aob foi finalmente liquidado, em meados de 2010, ainda havia 15 milhões de dólares presos na conta da Klienfeld Services.
Pior do que perder o dinheiro, contudo, era ficar sem um meio seguro para movimentar os recursos sem passar pelo compliance das instituições maiores. No começo, o grupo chegou a pensar em comprar o aob. Depois de avaliar a situação em detalhes, desistiu. Não só porque o rombo já havia se tornado incontornável, mas porque, na ânsia de limpar a barra antes da investigação que certamente viria, o setor de compliance do aob já comunicara operações suspeitas da Odebrecht às autoridades.
Estavam nesse pé quando Luiz Eduardo Soares chegou ao Brasil com uma solução. A duzentos metros da sede da aob na ilha de Antígua, havia uma filial de um banco austríaco, o Meinl Bank, inativa e à venda. Soares tinha ficado sabendo pelo próprio diretor do banco, Peter Weinzierl, em um almoço em Viena. E farejou um bom negócio, não só para a empresa como para si próprio. A filial do Meinl Bank consistia então em algumas poucas salas em um casarão de cor clara, cheio de janelas e com jeito de igreja evangélica, numa rua sem movimento. Tinha menos de dez funcionários, que matavam o tempo preenchendo papéis e cumprindo tarefas menores, apenas para obedecer às exigências da lei local. O plano de Luizinho era reabrir no Meinl Bank todas as contas fechadas no aob. Só que, daquela vez, não seria preciso negociar comissões e vantagens com o dono do banco para driblar o compliance. Porque eles seriam os donos do banco.
Comprar um banco era um plano ousado, que implicava riscos altos. A ideia já havia sido proposta à empresa, mas Hilberto Silva a descartara. Para ele, era melhor e mais seguro apenas operar com algum banco pequeno de paraíso fiscal, como o aob. Os executivos, porém, tinham suas razões para preferir a aquisição. A primeira era ter total controle da instituição, para impedir novas perdas e manobrar o compliance conforme a necessidade. A segunda era ganância mesmo. Desde que haviam começado a operar com o aob, os executivos haviam instituído um esquema sub-reptício de remuneração que drenava parte dos recursos sujos da Odebrecht para suas contas pessoais, sem que ninguém desconfiasse. Por esse acerto, metade dos 2% de comissão que a organização pagava ao banco para movimentar o dinheiro ia parar nas contas de Olívio, Migliaccio e Luizinho. Comprando o Meinl Bank, eles poderiam embolsar toda a comissão sem ter que dividi-la com ninguém. Então decidiram seguir com o plano, mas por conta própria. Para todos os efeitos, apenas trocariam o aob por outra instituição. Ninguém precisava saber que o banco seria deles de fato.
Foi o próprio Luizinho quem fechou o negócio com Weinzierl, em Viena. Por uma entrada de 3 milhões e mais quatro parcelas de 246 mil dólares, Olívio Rodrigues tornou-se o principal acionista individual do Meinl Bank de Antígua. Os três do aob também se tornaram sócios, gerindo o novo banco por salários de 10 mil dólares.7 O Meinl Bank passou a hospedar a maior parte das contas da quarta camada de offshores — pelo menos 71 contas, irrigadas por 33 outros bancos ao redor do mundo especialmente os sediados em paraísos fiscais como Suíça, Panamá, Andorra e República Dominicana.
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Tecnicamente, a Odebrecht já estava insolvente. Mesmo que vendesse todos os seus ativos para pagar a dívida, 8,2 bilhões de reais ainda ficariam descobertos. Embora fosse um alívio, o dinheiro da Ambiental não resolvia o problema. E como na recuperação judicial os credores são pagos conforme as possibilidades financeiras da companhia, numa ordem de prioridade estabelecida por lei, certamente quem ficasse ao fim da fila terminaria sem receber nada. Para os assessores financeiros, porém, não havia alternativa melhor para tentar garantir algum futuro à Odebrecht, depois de concluída a renegociação dos débitos. Eles foram enfáticos: sem a recuperação judicial, seria muito difícil sobreviver. Só que aquela não era uma solução popular na cúpula da organização.
A Odebrecht tinha pendurados no sistema financeiro 120 bilhões de reais, somando dívidas das empresas e avais da holding — que, sem lastro, virariam pó no momento em que se pedisse a recuperação judicial. O grupo encolhera para 79 mil funcionários, menos da metade de antes da Lava Jato, e o faturamento de 25,7 bilhões de dólares já era 34% menor do que o de 2015. A construtora, empresa que mais gerava recursos, perdera 4,3 bilhões de dólares em contratos desde o fim de 2016,11 não conseguia novas obras e já gastara 3 bilhões só para terminar as que já estavam em curso e se manter funcionando. Com o caixa secando, as agências de risco rebaixaram a nota da construtora para cc, reservada a empresas com alto risco de calote. Já haviam se passado doze meses desde a renegociação anterior, e a situação só piorava.
Para Emílio, uma recuperação judicial seria o fim da Odebrecht. “Não podemos fazer isso. Vamos precisar dos bancos!” Apesar de terem conseguido trocar uma parte das garantias ruins por ações da Braskem, os grandes bancos ainda tinham muitos financiamentos ao grupo garantidos por avais que não valiam nada. Mais exatamente 13 bilhões de reais, que, em caso de recuperação judicial, passariam a figurar como rombo nos balanços dessas instituições. Em tese, era um problema deles, e não de Emílio. Instituições financeiras vivem de emprestar dinheiro a pessoas físicas e empresas que, por vezes, quebram. E empregam centenas de analistas, advogados e especialistas justamente para ajudá-los a calcular riscos e se proteger. Se haviam cometido erros de avaliação e concedido créditos sem a devida proteção, deveriam arcar com as consequências. A Odebrecht não seria nem a primeira nem a última construtora a deixá-los pendurados na broxa. Naquele início de 2017, havia cinco empreiteiras em recuperação judicial, e outras cinco iam se juntariam à fila nos meses seguintes. Emílio e muitos no grupo, contudo, não viam a situação dessa maneira. Consideravam que uma recuperação judicial daquele tamanho decretaria o fim da Odebrecht. Nas discussões entre os executivos, surgiu uma alternativa: procurar os bancos, explicar a situação e pedir que não retivessem o dinheiro da venda da Ambiental.
A primeira reação dos banqueiros foi de indignação. Eles haviam emprestado quase 5 bilhões de reais ao grupo na pior crise financeira de sua história e no ano seguinte já iam receber um calote? Nas conversas com interlocutores como Candido Bracher e Alberto Fernandes, do Itaú, ou Luiz Trabuco e Lázaro Brandão, do Bradesco, Emílio disse que não tinha jeito. Ele dava sua palavra de que faria o que pudesse para pagá-los, mas, se não liberassem o dinheiro, seria obrigado a entrar em recuperação judicial. Como para banqueiro o que importa é dinheiro, e não palavra, eles deram um jeito de aproveitar a oportunidade. Disseram que cederiam os recursos, desde que a Odebrecht não entrasse em recuperação judicial e ainda incluísse novas dívidas sob a garantia das ações da Braskem. Se Emílio aceitasse a proposta, as mesmas ações que avalizavam uma dívida de 4,7 bilhões de reais passariam a servir de lastro para mais 2,1 bilhões.
Naquele momento, a petroquímica valia 25 bilhões de reais na Bolsa e a fatia da Odebrecht, 9,5 bilhões. O cobertor começava a ficar curto. Além disso, os novos contratos previam uma série de controles sobre futuras vendas e alienações de ativos que aumentavam o risco de a organização ser obrigada a entregar a Braskem num futuro não muito distante.
“Essa operação só faz sentido se vocês estiverem considerando perder a Braskem para os bancos e ficar com a construtora, o que seria uma loucura”, disse Eduardo Munhoz aos mais de vinte executivos, consultores e acionistas que se reuniram na sede da organização na manhã do sábado, 22 de abril de 2017. A Lazard preparara uma apresentação mostrando que a proposta dos bancos não só não salvaria a Odebrecht da recuperação judicial como, em um ano, eles teriam de partir para a concordata em situação muito pior. Preservar a Braskem, a galinha dos ovos de ouro, fazia muito mais sentido. Mas interromper as tratativas com os bancos e iniciar uma cascata de recuperações judiciais certamente provocaria um novo grande escândalo no mercado. Sem contar que, com várias recuperações judiciais rolando ao mesmo tempo, havia o risco de erros e malfeitos ainda escondidos virem à tona.
Ao final das discussões, já com a tarde de sábado virando noite, Emílio dispensou os consultores e disse que gostaria de deliberar sozinho com seu pessoal. Depois de um dia inteiro de reunião, o patriarca decretou: “A família está disposta a tentar”.
Foi essa a decisão que Newton de Souza comunicou na segunda-feira aos assessores financeiros e jurídicos. Ele, que sempre fora contra a recuperação judicial, anunciou vitorioso que haviam optado pelo acordo com os bancos. Os argumentos eram os de sempre: para empresas de engenharia, “rj”s são um caminho sem volta, e eles achavam que ainda não era o fim da linha. Não só Souza, mas a maior parte da diretoria e do conselho acreditava haver saída para a situação. Ainda estavam tentando vender Chaglla e alguns outros ativos, a economia brasileira começava a se recuperar e se esperava uma melhora nos negócios, especialmente na área imobiliária.
Os assessores não acreditavam no que estavam ouvindo. Deu-se então uma última tentativa de convencer Souza, que rapidamente se transformou em discussão. Os consultores diziam que a Odebrecht estava sendo irresponsável ao entregar aos bancos seu melhor ativo em troca de praticamente nada: “Vocês vão se foder!”. Mas era um desperdício de tempo, palavrões e tapas na mesa, uma vez que já estava tudo decidido. O objetivo de Souza ali era apenas comunicar uma decisão. À saída do prédio, ainda incrédulos, os assessores procuravam uma explicação. “Será que ainda tem esqueleto na engenharia? Só isso justifica morrer abraçado à construtora.”