O derretimento das commodities e a implosão recente das bolsas pode ser o início de uma crise ainda pior que a de 2008 — e o sintoma de um problema estrutural na economia do planeta: uma guerra pelos empregos, em que a principal munição é a moeda de cada país.
Para entender como está sendo travada esta guerra, é preciso voltar um pouco no tempo.
Uma breve história econômica
As tensões de hoje brotaram há cerca de 30 anos, quando o Grande Império do Leste começou a crescer a taxas acima de 10% ao ano. A partir de 2001, quando foi aceita na Organização Mundial do Comércio, a China pôde acelerar ainda mais suas exportações. Sua mão de obra barata atraiu multinacionais (principalmente americanas), que decidiram relocar suas fábricas para lá. O “Made in China” gerou desemprego do Kansas à Carolina do Sul, mas, por outro lado, os americanos importaram uma deflação de preços, o que ajudou muito o ‘average Joe’. Foi a era Wal-Mart.
Do carvão ao minério, do petróleo à soja, não havia mercadoria suficiente para atender a demanda chinesa, que se transformou em poucos anos na locomotiva da economia mundial. Essa demanda teve consequências maravilhosas para o Brasil e outros países que a natureza brindou com recursos minerais e agrícolas. Como vendíamos muito (e caro) para a China, o Brasil recebia uma enxurrada de dólares, o que fortaleceu o câmbio para níveis de R$1,70. Foi a era Lula: aquela brisa no rosto… aquela sensação de riqueza… aquele feeling de ‘ninguém-segura-esse-país’.
Ao mesmo tempo em que a China bombava, um outro império — os EUA — começava a sentir um certo desequilíbrio. Com uma inovação: nas últimas décadas, o banco central americano havia se encarregado de fabricar suas próprias bolhas. Desde os anos 90, o Fed passara a responder a cada crise financeira, ora provendo liquidez temporária a investidores em córner, ora derrubando os juros para salvar quem está apertado. Foi assim no resgate do LTCM (o maior e mais alavancado fundo de investimentos de então) e no estouro da bolha das ações de tecnologia. A cada crise, a ‘solução’ trazida pelo Fed semeava a próxima confusão.
Como juro baixo = dinheiro barato, os americanos não se fizeram de rogados. Compraram uma casa para morar e outra pra especular, pedalaram os cartões de crédito e ainda investiram pesado na Bolsa, aceitando pagar caro pelas ações. Foi a era conhecida como ‘a nova normalidade’ — a ideia de que a riqueza era perpétua e as recessões, uma coisa do passado. A quem duvidava, o pessoal em Wall Street respondia: “Dessa vez é diferente…”
Salvando empregos — custe o que custar
Em 2008, a bolha americana estourou. Num belo dia, alguém deixou de honrar uma dívida, e os bancos caíram como dominós, levando o sistema financeiro mundial à beira do colapso e causando um desemprego maciço no País. No que talvez tenha sido a decisão econômica mais importante do pós-guerra, as autoridades americanas se viram diante de um dilema: salvar quem estava quebrado, ou deixar que o desenrolar da crise arbitrasse vencedores e perdedores?
Temendo o fim do sistema capitalista, Washington decidiu jogar uma boia a todos os setores encrencados. O Tesouro americano emitiu centenas de bilhões de dólares em títulos, prontamente comprados pelo Fed dirigido por Ben Bernanke, o Jedi da Eterna Liquidez.
Em outras palavras, os EUA fabricaram dinheiro, injetado prontamente nos bancos e nas montadoras de Detroit. Obviamente, todas aquelas novas verdinhas em circulação desvalorizaram o dólar em relação às outras moedas, mas os EUA conseguiram o que queriam: estabilizar o sistema e recuperar, em poucos anos, milhões de empregos. (Ao mesmo tempo, os EUA começaram um esforço para equilibrar as contas do governo, o que colocaria o país em uma ótima situação mais tarde, quando comparado ao resto do mundo).
Mas se na superfície do capitalismo mundial as coisas logo voltaram ao normal, a guerra global pelo emprego continua latente.
Na Europa, apesar de doses cavalares de estímulo, a economia nunca se recuperou, e o desemprego continua assustador.
Na China, a economia continua esfriando, o que deve levar a uma quebradeira entre as empresas e expor buracos negros gigantescos nos bancos do país. Para poder exportar mais e assim evitar a perda de empregos, o Império contra-ataca: a China está desvalorizando sua moeda agressivamente desde agosto do ano passado. (A questão é: exportar mais para quem, numa galáxia quebrada?)
Finalmente, em alguns mercados emergentes como o Brasil, a desacelaração chinesa e erros monstruosos de condução da economia (vide a ‘Nova Matriz Econômica’ de Mantega, Augustin e Rousseff) desorganizaram as contas públicas, aumentaram a inflação e estão gerando desemprego.
Na guerra intergalática pelos empregos, a munição preferencial dos países é a própria moeda. É muito provável que, seguindo a China, vários países decidam se tornar mais ‘competitivos’ (as aspas aqui são importantes) desvalorizando suas moedas. A única moeda que, por enquanto, parece imune a este movimento é o dólar, e por dois motivos. Primeiro, porque os EUA estão com as contas públicas em ordem (comparados ao resto do planeta). Segundo, porque o grosso das dívidas corporativas ao redor do mundo são devidas em dólar — trilhões deles. Num universo que a cada dia gera menos emprego e renda, as empresas terão que pagar mais caro para conseguir os dólares de que precisam para rolar suas dívidas.
O que vem por aí
Para William White, chairman do comitê de desenvolvimento econômico da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), a situação da economia mundial hoje é pior do que em 2007, e a próxima crise (que pode estar começando agora) será ainda mais dramática do que a anterior — sem falar que a munição das autoridades para lutar contra uma recessão global já foi toda gasta.
Um aspecto que pode tornar a próxima crise pior é o fato de que o mundo continua devendo as calças. De acordo com o Bank of International Settlements, as dívidas dos governos, das empresas não-financeiras e das famílias encontram-se hoje em níveis ainda mais altos do que antes de 2008. Isto é verdade tanto nos países desenvolvidos quanto nos emergentes (veja tabela acima). Além disso, os juros em quase todo o mundo já estão perto de zero e os países já se endividaram demais para salvar seus bancos, limitando sua capacidade de dar novos estímulos.
‘’Vai ficar claro na próxima recessão que muitas destas dividas nunca serão pagas, e isso será desconfortável para muita gente que acha que tem ativos que valem alguma coisa,” White disse essa semana ao jornal britânico Telegraph . “A questão é se seremos capazes de olhar a realidade nos olhos e encarar o que está vindo aí de uma maneira organizada, ou se será uma bagunça.”
Para White, o não-pagamento dessas dívidas vai gerar novos ganhadores e perdedores em escala global, e uma tensão política proporcional. Na Europa, por exemplo, os bancos carregam em seus balanços um trilhão de dólares em empréstimos que não estão sendo pagos. Muitos destes bancos säo expostos a países emergentes e estão empurrando com a barriga dívidas impagáveis (sem admiti-lo a seus acionistas ainda). Estes bancos precisarão ser recapitalizados em uma escala inimaginável, diz White. Para ele, o próximo resgate dos bancos vai ser tão dramático que os europeus com mais de 100.000 euros no banco (o limite para o qual há seguro depósito) serão chamados a contribuir.
O Telegraph lembra que White foi uma das poucas vozes na comunidade dos bancos centrais que advertiu, em alto e bom som, que a crise de 2008 estava a caminho.
May the Force be with us.