O Banco Central quer reduzir o período que as administradoras e os bancos emissores de cartão têm para pagar aos lojistas. Como se sabe, o Brasil é o único País do mundo em que este prazo é de 30 dias, em vez de dois.
Mas como essa ‘jabuticaba’ nasceu?
Aparentemente, o ano que pariu essa singularidade brasileira foi 1984, ‘o ano que não terminou’ para a indústria de cartões, que até hoje usa o mesmo modelo, apesar de muita coisa ter mudado na economia desde então.
No texto abaixo, Victor Esteves, um ex-executivo da Credicard, narra as condições de mercado que levaram à gênese da jabuticaba.
O relato está no blog de Edson Santos, especialista em meios de pagamentos e autor do livro “Do Escambo à Inclusão Financeira”.
Aviso para quem nasceu depois do Plano Real: no texto abaixo, a palavra ‘float’ designa a capacidade do consumidor de manter seus recursos aplicados — e rendendo juros — até o momento de fazer o pagamento da conta do cartão, ou, da mesma forma, à capacidade de bancos emissores e credenciadoras de investir os recursos recebidos do cliente antes de pagar ao lojista.
Aviso aos millennials: a máquina rudimentar (ok, ‘vintage’) retaratada na foto acima era usada para processar os pagamentos em cartão de crédito quando a internet ainda não existia. Era um mundo que dependia de cópias carbono e três vias.
Quando entrei nesse negócio, em 1978, a praxe era pagar aos estabelecimentos em ‘oito, seis e quatro’. Essa era a maneira pela qual nos referíamos aos prazos, porque significava que o lojista podia receber em 24 horas (com 8% de desconto), ou com 6% (pagamento em 30 dias), ou ainda com 4% (pagamento, pasmem, em 60 dias). Na prática, todo lojista fazia suas vendas através dos comprovantes de venda, que eram anexados a um Resumo de Venda, que totalizava o valor o total de vendas, o total de gorjetas (quando era o caso), aplicava a taxa escolhida de acordo com a opção de recebimento escolhida, e levava à sua agência domicílio.
Praticamente 95% das vendas, ou mais, eram depositadas para crédito em 24 horas, mediante o desconto de 8%, que só incidia sobre o valor de vendas e nunca sobre a gorjeta (quando havia), já que a Credicard não queria ‘se indispor’ com os garçons, e por isso não fazia o desconto sobre a parte da gorjeta. Nesta época, quando nem internet havia, o cliente ‘passava o cartão’ numa maquineta de plástico que gerava um comprovante de venda em três vias de papel: uma ficava com o cliente, e as outras duas, com o estabelecimento. No final do dia, o dono do estabelecimento pegava uma dessas vias — a que seria enviada à Credicard — e as juntava num bolo: em cima dele, colocava uma capa — o ‘resumo de venda’, no jargão da indústria — no qual constavam a razão social, o domicÍlio bancário e a expressão ‘8.6.4’. (O lojista então marcava qual desconto preferia.)
Curiosamente, existiam alguns clientes que optavam por prazos diferentes do ‘à vista’, como a Casa Sloper, que continuava usando o prazo de 60 dias para fazer jus ao desconto mínimo de 2%. Não é à toa que acabaram fechando suas portas, ficando imortalizados apenas na música que a novela ‘O Astro’ popularizou.
O crédito era feito pela própria agência bancária, e 24 horas depois estava na conta corrente do cliente. Os atendentes do banco faziam a conferência do depósito apenas somando os valores e aplicando o desconto, e não era raro que os totais, bruto ou líquido, estivessem errados, gerando as famosas (na época) Ordens de Débito. Muitas vezes os clientes sacavam o valor e as ordens de débito não conseguiam ser compensadas, gerando Ajustes a Débito que vinham para os assistentes comerciais (meu cargo na época) cobrarem em visitas pessoais. Era a pior parte do trabalho…
Com esse sistema, as fraudes eram constantes e existia uma máfia que buscava as cópias de carbono dos comprovantes de vendas, preparavam cartões usando uma fita em alto relevo que se comprava fácil na época (ROTEX, creio) e depois distribuíam isso em lojistas previamente selecionados, cúmplices da prática.
Mesmo assim o sistema como um todo funcionava bem, e em 1978 a Credicard obteve seu primeiro lucro, depois da fase terrível de 74 a 76, quando se dizia que ‘o avião Credicard’ havia perdido o rumo. Essa imagem do avião era sempre usada nos treinamentos, quando se contava a história da Credicard.
A economia, todavia, ia de mal a pior, e o Governo do General Figueiredo, mesmo com os césares da economia da época (Delfim Netto, Simonsen e Roberto Campos) não conseguia domar o ‘dragão’ da inflação. Como emissor e adquirente ao mesmo tempo, a equação de lucratividade da Credicard era relativamente simples. Havia as receitas de emissor (inscrição, anuidades e juros sobre o ‘revolving credit’), pagas pelo usuário do cartão. As receitas de adquirência, pagas pelos lojistas, vinham das taxas de desconto, unicamente.
Com o crescimento da inflação, os usuários de cartões passaram a usar ao máximo o ‘grace period’, de tal forma que a maioria dos atendimentos a portadores era para responder à pergunta de ‘qual o melhor dia para comprar’. Quanto mais perto da data de corte (fechamento da fatura) fosse a compra, maior o ‘float’ que o portador ganhava. Até que, em 1984, esse float já se aproximava de 25 dias, e os 8% de receita do estabelecimento não cobriam mais o custo financeiro deste float, ou seja, a Credicard tinha que ir ao mercado buscar dinheiro para pagar aos estabelecimentos em 24 horas, e o custo dos 24 dias estava se aproximando ou superando a receita de 8%.
A previsão era que o negócio se inviabilizasse em pouco tempo. O chefe da operação de estabelecimentos convocou todos os gerentes e representantes comerciais ao Rio e mostrou o terrível panorama. Tratava-se de salvar o negócio, e para isso precisávamos eliminar completamente o pagamento à vista.
O objetivo era renegociar as taxas de desconto de 8% para 4% ou 2%, renegociando o prazo para 15 ou 30 dias. Fizemos um ensaio de um dia (fomos para a rua com clientes escolhidos para testar a receptividade) e lógico que os lojistas não gostaram nada da novidade. Mas o fato é que havia flexibilidade e, graças a uma campanha agressiva e a um excelente trabalho de campo, em poucos meses tínhamos mais de 80% dos estabelecimentos recebendo em 30 dias, cerca de 15% em 15 dias e apenas 5% resistiram e continuavam com pagamento à vista. Em menos de um ano esses 5% tinham cancelado ou migrado, e o negócio pôde continuar saudável — e o principal, adaptado para qualquer nível de inflação. Em alguns anos a reação tomou corpo, materializada na famosa ‘sobretaxa’, que diferenciava o pagamento em cartão do pagamento em dinheiro, em uma variação normalmente de 10% de desconto para quem pagasse em ‘cash’.
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Em outras palavras: A inflação galopante gerou um deslocamento do modelo de negócios da Credicard, que reagiu e se adaptou às novas condições de mercado, criando, com isso, um ‘benchmark’ para toda a indústria.
Enquanto a inflação era relativamente baixa, a Credicard se remunerava a 8% ao mês para fazer o pagamento em D+1 para os clientes. Mas quando a inflação disparou e fez aquela conta entrar no vermelho, a Credicard cortou a taxa mas passou a se remunerar no ‘float’ [a aplicação financeira do volume de recursos que ela terá que pagar ao lojista].
“A Credicard foi de um float negativo de 24 dias para um float positivo de 5 dias,” diz Edson Santos. Para ele, quando o lojista passou a ser responsável pelo financiamento do sistema, “a Credicard foi de uma situação ruim para uma situação melhor do que tinha antes.”
Esta é uma das belezas do modelo de negócios de cartões do ponto de vista dos bancos emissores: quando a Credicard (que era credenciadora e banco emissor ao mesmo tempo) passou de um modelo de negócios baseado num ‘float’ negativo para outro baseado num ‘float’ positivo, seu negócio não só ficou imune à inflação como passou a se rentabilizar ainda mais.
Hoje, assumindo que um cliente pague a conta do cartão em 24 dias, o banco emissor e a credenciadora dividem entre si os seis dias de ‘float’ que restam.