Menos de 24 horas depois da suposta trégua assinada pelos caminhoneiros, fica claro que, além de não ter levado ao fim da paralisação, o acordo imputou um ônus injustificável e ilegal ao resto da sociedade. 

Ele tem impacto nas contas públicas, desorganiza a Petrobrás e afeta as tarifas das concessionárias de rodovias, além de afrontar nitidamente a Constituição Federal e a legislação de defesa da concorrência.
 
Para me ater apenas a esta última questão, algumas vitórias obtidas ontem pelos caminhoneiros — como a definição de uma tabela de referência de frete de serviço de transporte e o estabelecimento de cotas para a contratação de determinados grupos pela CONAB, inclusive com dispensa de licitação (!)  — ferem princípios básicos da livre concorrência. 

Conforme entendimento já expresso tantas vezes pelo CADE, as tabelas de referência servem, na grande maioria das vezes, para se definir preços anti-competitivos, que beneficiam os membros do cartel enquanto lesam o consumidor. 

Da mesma forma, o estabelecimento de cotas tem efeito semelhante, na medida em que cria um nicho de mercado paralelo e restrito, garantindo uma renda extra para o grupo que dele participa. Tais objetivos foram nitidamente obtidos, nesta ‘negociação’, a partir de uma ação coordenada de boicotes por parte dos caminhoneiros.

É por isso que o CADE, na tarde de hoje, anunciou que vai investigar o assunto.

Muito provavelmente, o CADE estará atento à possibilidade de que o acordo viole o artigo 36 da Lei 12.529/2011, que considera infração à ordem econômica “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma os preços de bens ou serviços ofertados individualmente.” 

Além disso, outros incisos do mesmo artigo definem também como infração: ” limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; e destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los.”

Como se percebe, as demandas feitas pelos caminhoneiros violam frontalmente a Lei de Defesa da Concorrência.
 
A lei também define sanções administrativas para quem estimula um acordo como este, como os sindicatos e os agentes públicos envolvidos no ‘acordo’. Isto porque a mesma lei deixa claro que também é infração à ordem econômica “promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes.”

Parece que, no calor dos acontecimentos, os assessores dos ministros envolvidos no acordo, que têm clareza da gravidade do assunto, sequer foram consultados.

O acordo costurado também pode ter consequências na esfera criminal. As condutas podem ser enquadradas na lei que define crimes contra a ordem econômica (Lei 8.137/1990), cuja penas estão claramente definidas no Código Penal.

Em outras palavras, estamos assistindo a um atentado ao princípio da livre iniciativa e concorrência preconizados no artigo 170 da Constituição, com a conivência e até mesmo a participação ativa do Estado brasileiro. Aqui também vale um questionamento sobre a razão da inércia até o momento do Ministério Público Federal, titular da potencial ação penal no caso.
 
Mas tem mais… No acordo, os caminhoneiros conseguiram também a promessa de extinção das ações judiciais que visavam desobstruir as estradas e, também, de ações que buscavam responsabilizar os grevistas por prejuízos causados durante o movimento. 

Ao não impor as devidas penalidades aos que participaram do boicote, e ao aceitar termos nitidamente ilegais, o Governo indica para outros grupos de interesses que esta estratégia é aceitável e eficaz, o que só estimulará outros boicotes. 

Em última instância, o Governo estará permitindo um atentado às leis do país e às leis econômicas, pavimentando, junto com os caminhoneiros, o caminho do Brasil em direção ao caos.
 
Cleveland Prates é professor de Economia da FGV-Law, coordenador do curso de Regulação de Mercados da Fipe, e foi conselheiro do CADE de 2002 a 2004.