Quem quer que seja o presidente eleito, ele terá que atacar um problema complexo mas crucial: como restaurar a produtividade do setor público. Sem isso, haverá menos emprego, menos investimento, menos crescimento.
Enquanto Jair Bolsonaro, Fernando Haddad e outros debatem diferentes visões sobre o tamanho e as funções do Estado, os investidores se defrontam com um ambiente regulatório marcado pelo imobilismo, hostil à inovação e pouco compatível com um País que quer pensar seu futuro.
A sensação é a de que o comportamento dos agentes públicos hoje obedece a um algoritmo simples: “faça o máximo que puder, desde que nada seja assinado, formalizado, ou sujeito à revisão.” Entendo perfeitamente a situação deles: o agente público honesto e inovador corre riscos enormes no ambiente atual. Divido com o leitor algumas anedotas.
Há poucas semanas, um regulador confidenciou ao executivo de uma concessionária que a companhia fazia jus a um aumento de tarifa, mas que ele não poderia concedê-la porque os órgãos de controle iriam “massacrá-lo”. Outras concessionárias, por não terem cumprido seus cronogramas de investimento, estavam tendo reduções de tarifa – o contraste entre o aumento para uns e a redução para outros inevitavelmente levaria a uma ação dos órgãos de controle.
Explicou o regulador: “No Brasil pós Lava Jato, ninguém quer correr o risco de ser visto beneficiando uma empresa de infraestrutura…” Para minha surpresa, o executivo sequer mostrou indignação – ao contrário, disse entender a situação do regulador, que sugeriu uma jogada ensaiada. “Procurem a Justiça: por favor me obriguem a conceder o aumento,” pediu, numa cena que beira o realismo fantástico.
Em outra ocasião, fui discutir com dois dirigentes de um banco público o resgate de uma empresa à beira da insolvência. Ofereci, em nome dos fundos que administro, uma injeção de capital que impediria uma recuperação judicial da empresa, mas sujeita a uma carência no serviço da dívida até que a companhia se recuperasse.
O funcionário do banco então me explicou que preferia que a companhia quebrasse a conceder qualquer tipo de carência — seria muito complicado explicar a suspensão de pagamentos caso, mais tarde, a empresa não sobrevivesse e o TCU viesse a inquirir por que o passivo do banco “teria aumentado” (como o dirigente me explicou na época: “Se a empresa for quebrar, é melhor quebrar devendo ao banco R$ 200 milhões do que R$ 300 milhões”.)
Tentei argumentar que se tratava de um sofisma contábil: o banco já não estava recebendo nada, e talvez tivesse alguma recuperação de seu crédito se fizéssemos a injeção de capital proposta. Nada feito. Resultado: não fizemos o investimento e a companhia quebrou. Outro dia ouvi (não sei se é fato) que há um dirigente do BNDES com os bens indisponíveis por conta de um “haircut” (desconto do valor principal devido, comum em reestruturação de dívidas) outorgado no contexto de uma reestruturação. Por essas e outras, não posso culpar o funcionário por sua hesitação em discutir conosco a resgate da companhia em dificuldades.
Semana passada estive em reunião com um gestor de um fundo público. Me pareceu preparado e bem-intencionado. Contou-me que foi investigado por um órgão de controle por conta da seguinte situação: durante uma crise, conseguiu cobrar uma dívida de empresa de seu portfólio antes que esta pedisse recuperação judicial. A urgência do caso exigiu que se tomassem providências rapidamente, sem seguir o protocolo interno que levaria meses – e faria com que não houvesse nada a recuperar. O funcionário tomou uma atitude que resultou na preservação de centenas de milhões de reais para este fundo. Mas me disse que ouviu do auditor que era melhor perder dinheiro seguindo o protocolo do que salvar o fundo deixando de seguir o procedimento formal.
Qualquer banco ou fundo de investimento – público ou privado — tem de lidar cotidianamente com reestruturação de ativos. “Laudos” que indicam qual o “valor justo” de uma companhia podem se tornar completamente obsoletos em uma crise como a que tivemos a partir do segundo semestre de 2014. Por exemplo, entre o segundo semestre de 2014 e o final de 2015, o Ibovespa perdeu 18% de seu valor em reais e 54% de seu valor em dólares. Com isso, a grande maioria das “marcas” e “laudos” nos balanços tornaram-se completamente sem sentido, mas vi gestores e dirigentes absolutamente aterrorizados com qualquer exercício de atualização.
Nossa justificada desconfiança em relação ao setor público – os descalabros revelados pela Operação Lava Jato nos dão motivos mais do que suficientes para isso — criaram uma presunção de “ilegalidade” do ato administrativo.
Como resultado, o Brasil está parando. Temos reguladores que não regulam, bancos públicos que não reestruturam dívidas, fundos públicos que não vendem ativos.
Perdemos uma grande chance de enfrentar este problema: a chamada Lei da Segurança Jurídica, fruto do trabalho de respeitados acadêmicos e profissionais do Direito Administrativo, procurava pautar a questão em termos bastante razoáveis. Seu artigo 28 dizia que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
O dispositivo fazia todo sentido: o funcionário público que assina o ato administrativo não tem nenhum retorno pessoal na defesa do interesse público, mas seu patrimônio pessoal está em jogo a cada decisão. E, como regra, no setor público não há decisões fáceis ou óbvias: muitas vezes o melhor caminho torna-se claro muitos anos depois de tomada a decisão. Às vezes, nem isso. Se o mero “erro” pode resultar na responsabilização pessoal do agente público que lida com questões de enorme vulto financeiro todos os dias, a paralisia acaba virando a regra de conduta.
Infelizmente, sob pressão dos órgãos de controle, o governo Temer vetou parcialmente este e outros dispositivos. Graças ao veto, continua muito perigosa a vida do agente público que se vê às voltas com uma reestruturação de dívidas, uma venda de ativos, um reajuste de tarifas, um reescalonamento de investimentos, uma compra pública. E, sinceramente, não vejo como a supressão do dispositivo possa nos auxiliar na importantíssima luta contra a corrupção, argumento usado por muitos dos que pressionaram o governo pelo veto.
É obvio que nosso sistema de “contratações públicas” fracassou miseravelmente: gastos ineficientes, inflados, projetos básicos mal desenhados, (muita) corrupção. E os órgãos de controle – TCU em especial — têm um papel de profilaxia crucial, tentando responder a nossas aspirações por um ambiente menos tóxico. Aliás, o TCU tem se mostrado por vezes um indutor fundamental de boas práticas de gestão pública. Ainda assim, precisamos encontrar uma forma de fortalecer o combate à corrupção sem asfixiar completamente os setores regulados. As medidas necessárias passam pela abertura do mercado de infraestrutura e redução de barreiras à entrada de empresas estrangeiras (com o fim do império das credenciais), maior protagonismo do mercado de seguros e outros mecanismos de mercado que possam tornar a identificação de projetos viciados mais eficiente.
Infelizmente, o caminho que estamos trilhando não vai nos levar à solução do problema. Em medicina, há um termo técnico que define uma doença causada pelo tratamento: iatrogenia. Precisamos urgentemente de reformas que tornem a vida do corrupto mais difícil. Mas também precisamos de um regramento que incentive a eficiência e a agilidade da Administração. O setor privado sempre reclamou do peso da caneta pública. Agora, sente a falta que ela faz.
Daniel Goldberg é sócio-diretor da gestora de investimentos Farallon Latin America. Foi presidente do banco Morgan Stanley e Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.