A pandemia reacendeu a discussão sobre pobreza e desigualdade de renda no Brasil. O isolamento social secou a fonte de renda de milhões de brasileiros informais, autônomos e donos de pequenos negócios. Em geral, os mais ricos — executivos ou funcionários de empresas sólidas, servidores públicos, investidores— conseguiram se sustentar melhor, ainda que com perda de renda em alguns casos.

Nesse ambiente, Governo, Legislativo e sociedade parecem convictos da necessidade de reforçar programas de transferências de renda.
A busca pela melhor distribuição de renda não é nova nem monopólio de uma linha política. Em 1973, o economista Carlos Langoni, egresso da Universidade de Chicago, apontou o caminho no clássico ensaio “Distribuição de Renda e Desenvolvimento Econômico no Brasil”: o capital humano é a chave para unir crescimento e distribuição. 
 
De lá para cá, avançamos na universalização do ensino, mas com pouco resultado em melhorar a qualificação.
 
Ainda que começássemos uma revolução na educação no país, porém, o efeito não seria imediato. É preciso completar com programas sociais que produzam resultado de curto prazo.
O Bolsa Família cumpre esse papel. É uma transferência financeira direta, desvinculada (pode ser gasta com qualquer coisa), com contrapartidas em educação e focada nos mais pobres. E sua extensão é determinada pela dotação orçamentária disponível. Ou seja, é sustentável ao longo do tempo.
 
Pouco adianta um novo programa que gaste muito por um ou dois anos mas provoque um desarranjo econômico à frente. A incerteza fiscal pressiona os juros e a inflação, afastando o investimento. A economia cresce menos e o desemprego aumenta. Os ricos têm acesso a instrumentos financeiros para se proteger. Os pobres vêem sua renda corroída, ou perdem o trabalho. O resultado é mais concentração de renda, não menos.
O debate entre aumentar o Bolsa Família (ou criar o Renda Cidadã) versus manter o teto de gastos é, portanto, um falso dilema.
Neste sentido, a sugestão apresentada de usar o orçamento de precatórios é contraproducente. Ela foge da difícil — mas necessária -– discussão de priorizar despesas dentro do teto. Opta por abrir espaço postergando o pagamento de uma despesa obrigatória, líquida e certa.
 
Na prática, a proposta propõe o financiamento do programa social com mais dívida. Mas nossa dívida pública, próxima de 100% do PIB, já está entre as maiores do mundo emergente.  A dificuldade recente do Tesouro Nacional em alguns leilões de títulos públicos e a alta das taxas de juros para prazos mais longos denotam que estamos no limite desse instrumento.  Em doses controladas, endividar-se para fazer um investimento pode ser bom. Mas tomar emprestado para pagar uma despesa recorrente, com a dívida já elevada, é receita certa da bancarrota (além de ferir o dispositivo legal da chamada Regra de Ouro).
A reação dos preços do mercado financeiro após o anúncio da proposta, especialmente nas taxas de juros mais longas, refletiu esse aumento do risco fiscal. Não se trata de mau humor, mas da desconfiança racional de quem financia a dívida pública, de sua sustentabilidade.
               
É possível remanejar despesas dentro do teto? Nos grandes números, parece simples: precisamos de um espaço de R$ 20 bilhões a 30 bilhões dentro de um universo de R$ 1,5 trilhão de gastos totais. Mas não é. Quase 95% desse total é obrigatório por lei, incluindo Previdência, folha do funcionalismo e programas sociais como o BPC. Há forte resistência política.
O debate, contudo, tem que ser enfrentado. Parte dos gastos obrigatórios, particularmente em Previdência e folha, se destinam à parcela mais rica da população. Esses pagamentos não sofreram interrupção mesmo nos momentos mais agudos da pandemia. É possível, com regras bem ajustadas, acomodar o aumento do Bolsa Família nesta parcela, sem afetar a renda dos mais pobres.
Desvincular temporariamente as aposentadorias mais elevadas da inflação, por exemplo, seria uma saída. Não impõe perda nominal aos beneficiários e abre espaço permanente do teto para aumentar de forma sustentável as transferências aos mais pobres.
Caso não haja disposição política para enfrentar este debate, o melhor é manter o programa nas dimensões atuais e buscar aprimorá-lo com melhores mecanismos de contrapartida e uma porta de saída segura aos seus beneficiários para o mercado de trabalho — sem colocar em dúvida a determinação de melhorar nossa frágil perspectiva fiscal.

Caio Megale é economista-chefe da XP.  Até julho, foi diretor de programas na Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia. Entre 2017 e 2018, foi secretário municipal da Fazenda em São Paulo.