Uma nova regulação que acaba de entrar em vigor na Europa vai redesenhar o papel dos analistas de sellside – aqueles que trabalham para bancos e corretoras – na indústria de investimentos e promete reduzir (ainda mais) as áreas de research.
Dentre os mais de 1,5 milhão de parágrafos do MiFid II, uma ampla reforma nas regras de negociação de valores mobiliários na União Europeia, está a obrigação de que as corretoras cobrem separadamente pela execução das ordens e pelo research, rompendo com um modelo praticamente escrito em pedra em que as taxas de corretagem financiavam indiretamente os departamentos de pesquisa.
Apesar da regra ser europeia, o impacto será sentido no mundo todo: gestoras que investem fora da região terão que pagar pela pesquisa de bancos estrangeiros, da mesma forma que bancos europeus terão que cobrar pelo conteúdo a investidores de fora. Parece uma questão de tempo até que a SEC e outros reguladores (como a CVM) optem por seguir o mesmo caminho.
O resultado da cobrança indireta pelo research (a base do modelo atual) é conhecido: uma sobreposição brutal, em que diversos analistas cobrem os mesmos papéis, e uma chuva de relatórios e notas que inundam diariamente as caixas de email, sem necessariamente trazer insights.
Uma pesquisa feita pela consultoria Quinlan & Associates traduz o excesso de capacidade em números: dos 40 mil emails disparados semanalmente pelos analistas dos 15 maiores bancos de investimento globais, menos de 5% são efetivamente abertos.
Com a obrigação de cobrança e um buyside cada vez mais apoiado em análise feita internamente, esse excesso agora deve ser cortado na carne. Consultorias internacionais projetam que a produção de conteúdo por bancos e corretoras cairá de 20% a 60% com a implementação do MiFid.
Se para os pessimistas essa pode ser a morte do research dos bancos, para os otimistas será o renascimento.
“O gestor vai pode escolher: vou contratar o serviço do banco X em consumo e do banco Y em real estate, porque eles têm o melhor analista. Vai faltar espaço para análise rasa e começar uma competição maior pela qualidade”, diz Fabiane Goldstein, sócia da consultoria de relações com investidores da InspIR Group (antiga MBS Value Partners).
A corrida por diferenciação já começou.
O UBS, por exemplo, aprofundou nos últimos meses sua série ‘Evidence Lab’, que publica pesquisa proprietária com sacadas diferentes – e, muitas vezes, inacessíveis aos investidores. No ano passado, por exemplo, o banco contratou uma equipe de mecânicos e engenheiros que desmontou um Chevy Bolt, o carro elétrico da GM. As descobertas serviram para avaliar a rentabilidade e os desafios da indústria de carros elétricos, todos extrapolados para ajudar os clientes do banco no valuation da Tesla.
Das novas regras emergiu também uma ironia: um negócio que existe justamente para atribuir preço-justo a empresas ainda não faz a menor ideia de como se precificar. Enquanto o JP Morgan pretende cobrar apenas US$ 10 mil por ano para quem quiser acessar seus relatórios e a Goldman Sachs pretende pedir US$ 30 mil; já o Barclays acha que a inteligência de seus analistas vale US$ 455 mil anuais, segundo a Bloomberg.
Os preços são tão díspares que seria impossível construir um consenso de mercado, mas um ponto está claro: há sim valor no sellside, mas ele está escondido há muito tempo.
Enquanto os relatórios estão mais para commodities, o verdadeiro ouro está no acesso aos principais analistas, que são capazes de dar insights relevantes numa conversa telefônica e falam com as empresas que cobrem dia sim, e noutro também.
Também são eles que organizam o ‘corporate access’ – os encontros com CEOs, CFOs, fornecedores, e concorrentes, nos quais os investidores aprendem muito mais que nos relatórios.
Ainda segundo a Bloomberg, para projetos de pesquisa sob medida para o cliente, a Morgan Stanley pretende cobrar US$ 2.500 pela hora de seus analistas – quase o dobro do que cobram sócios sêniores de escritórios de advocacia estrelados.
Uma pesquisa feita pelo CFA Institute mostra que, na média, as gestoras europeias pretendem gastar 31% do orçamento para pesquisa terceirizada com acesso aos analistas. Esse valor muda de acordo com o porte: para as gestoras com menos de € 1 bilhão sob gestão é de 20%, enquanto para as maiores, com mais de € 20 bilhões de patrimônio, chega a quase 40%.
Esses números mostram uma consequência inesperada do MiFid: com menos recursos, os fundos de menor porte terão menos condições de competir com os gigantes. De acordo com a S&P Global, isso deve aprofundar a onda de consolidação em um setor já espremido pela ascensão dos fundos passivos e ETFs.
No rearranjo de papéis e forças, as empresas listadas, acostumadas com a ponte com os investidores feitas ‘de graça’ pelos analistas, também terão que correr para ganhar mais exposição. “A verdade é que muitas empresas acabam ‘terceirizando’ boa parte do trabalho de targeting de investidores para os brokers, que promovem eventos, fazem roadshows….” diz Fabiane, da InspIR. “Esse espaço tende a se reduzir muito, especialmente para as empresas de menor liquidez, e vai exigir criatividade e orçamentos dos RIs.”
É possível que o pagamento direto e a concorrência suavize ainda o conflito de interesses que tem sido o estigma do setor: o mesmo banco que recomenda a compra de uma empresa quer manter um bom relacionamento comercial com ela – o que gera a eterna recomendação “neutra” para companhias que, se o mundo fosse mais honesto, mereceriam recomendação de “venda”.
“Pagando diretamente, os gestores e investidores vão elevar a qualidade e ser menos tolerantes com os analistas que ficam dourando a pílula. Os analistas, assim como as companhias que eles acompanham, vão trabalhar para forças de mercado mais transparentes”, escreveu Philip Augar, que trabalhou por 20 anos como corretor e analista na City de Londres, em artigo no Financial Times. “Para os que estão hoje no negócio é um pequeno consolo. Para aqueles que sobreviverem, é definitivamente um prêmio.”