No nosso mundinho rarefeito da Faria Lima e Leblon, João Amoêdo dispensa apresentações — e, apesar da balcanização fratricida que dilacera o Novo, continua sendo uma referência de competência, ética e espírito público.

Infelizmente, este ‘awareness’ não existe no resto do Brasil, onde o ‘Evangelho do Liberalismo Segundo João’ ainda não chegou com a força e o didatismo necessários para consquistar corações e mentes, muito menos os votos.

Neste sentido, é uma boa notícia que a Companhia das Letras esteja publicando este “Sem Atalho: Uma jornada até a política e minhas ideias para o Brasil” (216 páginas, R$ 69,90) que relata as memórias de João da campanha eleitoral mais bizarra que o Brasil já viu, os bastidores da construção do Novo, e sua visão para o País nesta quadra tão dramática e envenenada de nossa história comum. (Leia dois excertos abaixo)

A escolha do título já é, em si, um argumento político:  como toda pessoa racional (ainda mais um executivo formado num banco), João sabe que a Política é uma construção lenta, que demanda tanto clareza intelectual quanto resiliência e sorte.  Seu ‘sem atalho’ também é um alerta ao Brasil para que não aguarde milagres ou balas de prata.  Não há Messias — seja um indivíduo ou uma força de expressão — que resolverá nossos problemas, muito menos se fiando em ideias rasteiras, preguiça intelectual e na beligerância como método.

Infelizmente, o brasileiro sempre acreditou em atalhos — expressando isso na cultura na forma do ‘jeitinho’ e da Lei de Gérson — e esse papo de fazer um partido bonitinho, sem dinheiro público, com regras de seleção… ainda não parece ter pegado.  O eleitor prefere o cara que grita, não o que reflete; o que diz que vai resolver na marra, não no diálogo (e no final não resolve nada).  Na hora de embarcar numa plataforma política, gravitamos para o clichê, o slogan fácil, a solução em uma frase simples. A sina de um país pouco educado é  desprezar a ciência, os dados, ou qualquer exame mais profundo.

João, um candidato de elite — ‘o melhor candidato’ para muitas pessoas que refeltiram um pouco naquele sombrio 2018 — jamais teve chance.

Mas — tal qual Fernando Henrique comendo a buchada de bode em 1994 — o homem gastou sola de sapato, trocou a Rua Amauri pelo Brasil Profundo, e tentou fazer sua parte.

Este livro fala dessa jornada pessoal que diz respeito a todos nós — e é uma leitura apropriada para o ano que se avizinha, no qual os mesmos erros estão prestes a ser cometidos.

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Uma missão e algumas lições

“Nunca vi um candidato à presidência preparando, ele mesmo, sua apresentação.” O comentário veio de um homem sentado na poltrona atrás da minha no avião. Eu estava montando os slides que acompanhariam minha apresentação na próxima parada. “Lá no Partido Novo é assim, fazemos tudo”, respondi. Emendamos uma conversa, e ele me contou que era dono de uma fábrica de cimento. Estávamos a poucos meses das eleições presidenciais no Brasil de 2018, nas quais eu concorreria a um mandato político pela primeira vez.

“Eu gosto de você, mas vou votar no Bolsonaro. Porque a gente precisa tirar o PT”, foi a fala do empresário. Esse tipo de comentário estava se tornando frequente com a aproximação do pleito, e, naquele momento, virei para ele e perguntei:

— Você disse que tem uma fábrica de cimento?

— Isso.

— Se você se afastasse da empresa por seis meses, deixaria o Bolsonaro cuidando dela em seu lugar?

Ele foi rápido e enfático na resposta:

— Não, imagina. De jeito nenhum.

— E vai deixar o Brasil? — questionei.

Como resposta, obtive apenas o silêncio.

Aquela conversa acabou ali. Mas outras similares continuaram acontecendo até 7 de outubro, dia do primeiro turno das eleições. A incoerência do raciocínio não me surpreendeu. No Brasil, boa parte da elite empresarial, apesar de pensar no longo prazo quando se trata de tomar decisões em relação ao seu negócio, não tem a mesma postura em relação ao País. Prevalecem os resultados imediatos, os interesses próprios e os atalhos. Isso explica muito das deficiências que temos como nação.

Certa vez, minha filha Mariana estava distribuindo santinhos no Leblon durante minha campanha em 2018 e ouviu o seguinte de um homem: “Sei que você está fazendo isso para ganhar seu dinheirinho. Vou pegar um para ajudar, mas não se envolve com política, não”.

Eu tinha consciência de que o crescimento do Partido Novo, no ambiente político que ainda perdura no Brasil, demandaria tempo e resiliência, especialmente no início, mas era uma semente que precisava ser plantada para termos uma forma diferente de fazer política.

A cultura tradicional de votar em quem tem mais chance, mesmo que não seja o mais preparado, ou de escolher o melhor candidato em vez do melhor mandatário, solapa justamente a representatividade e a renovação que tanto exigimos como eleitores. Essa postura acaba por criar uma seleção adversa, que privilegia os políticos tradicionais e desestimula a entrada de novas lideranças. Em resumo, se queremos renovação, mas não estamos dispostos a avaliar e apoiar novos candidatos, nossa ação é irracional, não produzirá resultado e continuaremos reféns dos políticos que se perpetuam no poder.

Nossa obrigação como cidadãos é conhecer, escolher e divulgar aquele que julgamos ser o melhor mandatário, de modo que se torne o favorito entre os candidatos. Não podemos ser omissos a ponto de deixar que alguém que não julgamos ser o melhor se transforme em favorito.

Nos trinta dias que antecederam as eleições em 2018, presenciei um movimento de pessoas, inclusive algumas próximas, mudando seus votos. Além disso, passaram a divulgar e a propagandear essa mudança, com o intuito de incentivar outros a fazerem o mesmo. A única justificativa era: não podemos deixar o PT vencer. A consequência dessa atitude era que o voto seria dado contra o partido que se repudiava, em vez de ser depositado no candidato em que se acreditava. Desse modo, a eleição, que se dá em dois turnos, era tratada como se tivesse apenas um. Obviamente, como candidato, fiquei muito incomodado, mas como cidadão me senti ainda mais decepcionado ao ver as pessoas defenderem e fazerem campanha para alguém que poderia ser presidente do País, mas em quem não acreditavam. Era novamente a vitória do imediatismo.

Outro episódio ilustra bem a falta de coerência de pessoas que deveriam ser formadoras de opinião. Em outra de minhas viagens durante a campanha, um homem mais velho, que também se identificou como empresário, me reconheceu no aeroporto de Teresina e se aproximou — uma situação que havia se tornado habitual desde o lançamento da minha candidatura, mas que eu ainda estranhava. Ele falou que gostava das minhas ideias, mas que eu não teria seu voto porque o Brasil precisava primeiro de “ordem”, o que significava tirar o PT naquele momento, e só depois estaria pronto para o “progresso”, associando essa segunda etapa à minha possível administração. Já estávamos nos aproximando do final da campanha do primeiro turno, e esse chavão — primeiro a ordem, depois o progresso —, apresentado junto com a foto de Bolsonaro e depois a minha, era repetido exaustivamente pelos bolsonaristas nas mídias sociais.

Esse empresário sugeriu, inclusive, que eu deveria dar uma contribuição ao País e renunciar à candidatura. Insistiu que eu deveria dar espaço a Bolsonaro e voltar à disputa nas eleições de 2022. Depois de alguns minutos explanando sua visão política, enquanto eu permanecia calado, ele perguntou se podia tirar uma foto comigo. Foi a única vez, durante toda a campanha, em que respondi: “Não, não pode”. Não era uma reação pessoal, e sim uma manifestação da postura lógica que norteia minhas atitudes. Se ele entendia que eu deveria renunciar e não pretendia votar em mim, por que ter uma foto comigo?

 

A facada

Em 2018, somada à polarização política, havia uma grande insatisfação da sociedade em geral com o PT. Aproveitando esse sentimento, Bolsonaro adotou o discurso de que era preciso “salvar o Brasil” do governo petista, e assim alavancou sua popularidade. Muita gente começou a vê-lo como a única possibilidade de mudança. Para justificar essa escolha, as pessoas repetiam que “em primeiro lugar, precisamos tirar o PT”.

Nosso objetivo de campanha era quebrar essa lógica de que o “menos pior” fosse a única alternativa viável. Não poderíamos perder a oportunidade de renovar as práticas políticas. O Brasil não suportaria mais quatro anos de um governo que não tivesse um líder com capacidade e competência para fazer as mudanças estruturais necessárias. Resumi isso em uma entrevista com a seguinte afirmação: “Perder o voto não é votar naquele que não está ainda entre os primeiros colocados nas pesquisas. Perder o voto é votar em alguém que nada irá mudar na nossa política”.

Entretanto, um fato totalmente inesperado tornou nossa tarefa praticamente impossível. No dia 6 de setembro, pousando em Campo Grande, tirei o celular do modo avião e li uma notícia informando que Bolsonaro levara uma facada durante um ato em Juiz de Fora. Um fato abominável como esse reforçava a necessidade de mudarmos os rumos do País. Estávamos a exatamente um mês das eleições, a reta final e o período mais intenso da campanha. O TSE havia acabado de barrar a candidatura de Lula, que vinha liderando as pesquisas até então. O PT ainda não tinha anunciado quem ficaria em seu lugar, embora todos esperassem que fosse Fernando Haddad, seu vice na chapa. Já era um período de incerteza, e a facada aumentou a sensação de instabilidade.

Bolsonaro passou a ter maior cobertura da imprensa, que acompanhou sua recuperação pós-cirúrgica, além das investigações da polícia sobre o autor e os motivos do atentado. Desautorizado pelos médicos de participar dos debates eleitorais, ele se blindou de eventuais exposições negativas, sendo poupado de responder a perguntas sobre assuntos que não domina ou para as quais não teria resposta. Seu desempenho nas pesquisas de intenção de voto, que já era relevante, aumentou significativamente após o episódio. Ao mesmo tempo, o então candidato oficial do PT, Fernando Haddad, também começou a subir. No final de setembro, Haddad ocupava a segunda colocação nas intenções de voto, atrás apenas de Bolsonaro. Para piorar a situação, alguns levantamentos apontavam que Bolsonaro perderia de Haddad em um eventual segundo turno entre os dois.

Em razão do acontecimento inesperado e da gravidade do atentado, a polarização, que já ditava o tom da campanha, se intensificou. Grande parte dos eleitores, ao atribuir a antagonistas de esquerda a autoria do ataque, decidiu que Bolsonaro seria o único candidato apto a livrar o País da dominação dos “esquerdistas”. O bom senso e as qualificações dos demais candidatos ficaram de fora da disputa. A partir de então, prevaleceu o “nós contra eles”, que infelizmente impera até os dias atuais. Posteriormente, tive conhecimento de que pessoas próximas e apoiadoras do Novo passaram a pedir que não votassem mais em mim, mas sim em Bolsonaro. O plano era eleger o mais rápido possível alguém que impedisse o PT de chegar ao poder, sem pesar as consequências futuras.

Com a presença constante de Paulo Guedes ao seu lado e a indicação de que ele seria o futuro ministro da Economia, Bolsonaro sinalizava um governo liberal e atraiu boa parte da elite financeira do País. Na reta final, os ataques contra mim, via fake news, se intensificaram. Houve vídeos com histórias inventadas, ataques pessoais, e uma imagem que circulou muito, que eu mesmo recebia com frequência, trazia a frase “primeiro a ordem e depois o progresso”, com uma foto de Bolsonaro e o ano 2018 e uma minha e o ano 2022. Era a forma de converter, ainda no primeiro turno, o voto de eleitores que gostavam das ideias que eu defendia em votos para Bolsonaro. A estratégia funcionou. A lógica de uma eleição em dois turnos, que conduz o eleitor a votar no primeiro turno em quem de fato o represente, deixou de existir.