PARIS – Há 100 anos, Tarsila do Amaral entrava no auge de sua carreira ao ajudar a parir o modernismo brasileiro enquanto flanava por aqui usando um casaco vermelho da maison Patou.
Meio século depois, já distante dos holofotes europeus mas ainda ativa, viu algumas de suas obras tardias serem expostas pela última vez no Brasil antes de ficarem ‘esquecidas’ por décadas em coleções particulares.
Agora, a exposição Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno – em cartaz no Musée du Luxembourg até 2 de fevereiro – apresenta os dois lados da carreira da pintora paulista ao público europeu.
“Paris era muito generosa com os artistas que passavam pela cidade, só que a crítica não fazia o esforço de acompanhar o trabalho de quem não estivesse mais aqui,” Cecilia Braschi, a curadora da exposição, disse ao Brazil Journal.
Daqui, a retrospectiva vai para o Guggenheim de Bilbao.
O trabalho de três anos de curadoria de Cecília indica, não obstante, que a experiência francesa não está tão distante assim da brasileira quando o assunto é Tarsila.
Depois de todo o prestígio durante o auge do Modernismo, quando realizou duas exposições individuais em Paris (1926 e 1928), Tarsila foi desconsiderada e reconsiderada pela crítica de seu próprio País por diversas vezes.
Isso permitiu aberrações como a compra do Abaporu (1928) por um colecionador argentino em 1995 e a descoberta de um quadro inédito da pintora na SPArte este ano.
Depois de retrospectivas em Paris em 2005 e Madrid em 2009, uma onda mais forte de reconhecimento ao trabalho da artista começou lá fora. Em 2018, o MoMA realizou a exposição Tarsila do Amaral: Inventando Arte Moderna no Brasil.
No ano seguinte veio Tarsila Popular, no MASP, um divisor de águas no mais recente processo de reconexão do Brasil com a obra da pintora.
Ainda assim, o espaço dado a seu trabalho posterior a 1930 foi limitado em todas essas mostras – com brilhantes exceções, como Operários (1933).
O que se vê agora no Musée du Luxembourg é uma tentativa de preencher esse vazio com a exibição de vários quadros que não vinham a público pelo menos desde a última retrospectiva em vida de Tarsila, em 1969.
São eles: Lenhador em repouso (1940), Terra (1943), Estratosfera (1947), Vilarejo com ponte e mamoeiro (1958), A Métropole (1958), Calmaria III (década de 1960) e Paisagem com 15 casas (1965), para além de muitos desenhos.
Cecília classifica o resultado da curadoria como uma retrospectiva de apresentação da artista ao público europeu, com base no vasto material produzido no Brasil nos últimos anos – e busca entender porque parte relevante da obra de Tarsila foi deixada de lado por tanto tempo.
“No início da pesquisa, não sabia nem se ia conseguir acesso às obras, porque tinha muita coisa em coleções particulares,” disse.
(As placas de identificação das peças expostas estampam nomes importantes do circuito da arte, como Jones Bergamin, Max Perlingeiro e Luiz Carlos Ritter. E de famílias como os Setúbal, Marinho e Klabin.)
A conclusão da curadora é de que Tarsila foi vítima de preconceito dos dois lados do Atlântico.
Por um lado, é uma artista brasileira que vai a Paris e só “existe” para aquele público enquanto estava lá, apesar de incursões posteriores à América Latina e à União Soviética. Por outro, sofre com a separação de Oswald de Andrade, com a ruína financeira de sua família e a queda de São Paulo como capital cultural após os anos 1920.
“Lemos nos registros da época que ela perdeu inspiração, que estava decadente. Mas a obra tardia dela dialoga com as dinâmicas da cultura internacional, apresentando referências do muralismo mexicano e da gráfica soviética,” disse Cecilia.
“E ao mesmo tempo, ajuda a explicar o Brasil até os anos 1970. O País sofreu mudanças tão rápidas que para nós, na Europa, onde há uma linearidade histórica muito mais lenta, é difícil entender.”
(Vale lembrar que a artista nasceu em 1886, antes da abolição da escravatura e da proclamação da República, e morreu em 1973, com Brasília já de pé e os militares no poder.)
No quadro Terra, por exemplo, Cecilia defende que pode haver um encontro entre o realismo social – explorado pela artista nos anos 30 após sua viagem à União Soviética – e o período antropofágico.
O nome da tela e a relação da personagem com o solo fariam referência às lutas camponesas que animavam o contexto rural brasileiro nessa época, enquanto o reaparecimento do cacto e as montanhas no horizonte, que se fundiam com os cabelos do personagem alongado, remontavam à imagem que marca a era moderna da pintora.
Já em Metrópole, Tarsila apresenta a mudança drástica da paisagem paulistana nos anos 50, com arranha-céus passando a compor o horizonte da cidade em tons escuros e linguagem mais abstrata.
Em Calmaria III, parecia querer experimentar o toque gestual e pastoso da abstração informal que prevaleceu na Bienal de São Paulo de 1959. Assim, utilizou formas geométricas mais reais, materializadas por arquitetos visionários como Oscar Niemeyer ou pintores paisagistas como Roberto Burle-Marx.
Apesar de não contar com as luxuosas presenças de Abaporu, A Lua (1928) e Antropofagia (1929), a exposição também contempla o “Lado A” da obra de Tarsila, desde os primeiros estudos em Paris até o auge antropofágico, passando por obras icônicas como Autorretrato (Manteau Rouge) (1923), A Negra (1923), A Cuca (1924), Cartão-postal (1928) e Operários.
“Todo o seu personagem entra no circuito parisiense em busca de estabelecer um diálogo entre a cultura brasileira e a cultura internacional. Isso porque Paris não era só a França naquele momento, era onde os artistas de todo o mundo estavam,” disse Cecilia.
“E Tarsila não foi simplesmente influenciada pelo meio. Quando foi a Paris pela primeira vez, não pensava em ser moderna. Isso foi um projeto brasileiro.”
Esse diálogo fica claro em A Cuca, que possui moldura assinada por Pierre Legrain. Assim como Tarsila, o artista multidisciplinar francês buscava testar os limites de aplicação de seu trabalho. Legrain potencializou esse anseio posteriormente na União de Artistas Modernos, um movimento que ele encabeçou para tentar reintegrar a arte e a decoração à vida cotidiana.
Há ainda os questionamentos não respondidos sobre A Negra, inicialmente consagrada como homenagem modernista à identidade afro-brasileira, depois reconhecida como ilustração dos estereótipos racistas próprios das sociedades brasileira e francesa dos anos 20.
Para Cecilia, trata-se de um testamento da atualidade que a obra da Tarsila mantém.
“O maior elogio que recebi em relação à exposição veio de jovens, que afirmaram que a temática interessa a eles, fala para eles. Pautas políticas, culturais, de identidade, de representação racial, de como uma artista se insere em um panorama de arte masculino e eurocêntrico. Tudo segue muito atual.”