No final de abril, com a pandemia fechando o comércio e a vida normal em suspensão, o CEO da Aliansce Sonae, Rafael Sales, disse ao Estadão que “um meteoro caiu em cima dos shopping centers”.
Sete meses depois, o estrago no setor parece ter sido menor que o esperado. Alguns shoppings da Aliansce já estão vendendo 10% a mais do que no ano passado, e a ocupação está em 95% — um número saudável, dado que a companhia operava com 96% antes da covid.
Ainda assim, as ações da Aliansce, BR Malls, Iguatemi e Multiplan ainda negociam aos níveis de abril — precificando uma perda de valor permanente — e o temor de uma segunda onda da pandemia permanece como uma espada sobre a cabeça do setor.
Enquanto a NTN-B 2050 — o título de longo prazo atrelado à inflação mais usado como benchmark do setor — paga um yield real de 4,3%, os shoppings negociam em média a 8%. (O potencial de crescimento joga a taxa interna de retorno para perto de 10%).
O Brazil Journal conversou com Sales sobre a percepção e a realidade do varejo na maior companhia de shoppings do País, com 39 malls.
O mercado está preocupado com vacância, com inquilinos pequenos (principalmente os de franquias) tendo que entregar suas lojas, ou seja, com os shoppings sofrendo. Quanto desse temor é justificado e quanto é infundado?
Do ponto de vista de setor, essa dúvida sobre como vai ser o pós-pandemia, os hábitos do consumidor, obviamente afeta o imaginário e as projeções dos analistas, porque nunca na história houve o fechamento do comércio por quatro meses, como teve no Brasil (aliás, o Brasil foi onde o comércio fechou por mais tempo no mundo). A última vez que tivemos um evento como esse, em 1917, os bazares não fecharam, as feiras não fecharam. As pessoas não ficaram presas em casas, saíam…
Quando há rupturas muito grandes, historicamente a gente tende a ter reações também muito extremadas e projetar visões de longo prazo que são afetadas por aspectos de muito curto prazo. A gregariedade do ser humano eu acho que não mudou, a vontade de estar junto, de ver as coisas, sentir, passear, isso não mudou. O uso do equipamento de real estate de alta qualidade bem localizado muda ao longo dos anos, mas muda gradativamente.
Essa ideia de que pouco vai mudar na realidade vale tanto para o Brasil quanto para os EUA?
No Brasil o cenário do setor é bem diferente dos EUA, porque a dependência de segmentos específicos como eletroeletrônicos e vestuário é muito menor. Aqui, 36% da receita de aluguel dos grandes shoppings é serviços, alimentação, entretenimento. Por isso, um ano atrás, todas as empresas do setor aqui no Brasil negociavam com um prêmio sobre as americanas e europeias.
A gente negociava a um bom prêmio sobre as empresas americanas porque tínhamos essa composição de um mercado muito menos penetrado combinado com um produto muito mais adequado à vida dos brasileiros, que é suprir uma falta de infraestrutura de qualidade na vida, a falta de áreas de lazer.
A ação da Aliansce está hoje quase no mesmo patamar de março e abril, quando estava no olho do furacão. O papel não recuperou quase nada, mas o fluxo dos shoppings já voltou ao normal em muitos casos. O mercado está exagerando ou a mudança na perspectiva de longo prazo justifica essa queda?
Eu trabalhei como investidor fundamentalista durante 15 anos. Fui gestor de um fundo [Constellation]. E uma das coisas que eu aprendi é que tentar entender porque o mercado está fazendo algo é um exercício inglório por conta das idiossincrasias que estão por trás das decisões que são tomadas — desde a falta de conhecimento do negócio até movimentos de manada que podem se confirmar ou não.
Eu acho que é verdade que o ecommerce acelerou muito seu ganho de share sobre o varejo tradicional. Mas em alguns segmentos, estamos vendendo nos shoppings mais do que 2019. Alguns shoppings do nosso grupo estão vendendo 10% a mais no shopping inteiro em comparação com 2019.
Só que tem situações muito específicas: tem segmentos do varejo (dentro do shopping) em que a situação normalizou mais rápido, outros ainda não. Pega o varejo de vestuário, por exemplo: pra que você vai comprar uma roupa nova bacana se você não vai sair?
Mas você acha que houve algum ‘impairment’ permanente de valor no setor?
Pode ter acontecido uma perda de valor, mas que varia muito de empresa para empresa. No nosso caso, acho que ela foi muito pequena, porque em contrapartida os nossos concorrentes ficaram fracos, o que abre espaço para ganharmos share desses pequenos concorrentes. E vou te dar um exemplo de vacância, que é o indicador mais fácil para ver o impacto da pandemia.
No terceiro tri, a gente gerou quase o equivalente a 70% do caixa que geramos no terceiro trimestre do ano passado tendo operado a 70% da capacidade, e a nossa vacância só aumentou 40 pontos-base (0,4%). Continuamos com 95% de ocupação.
A gente se preparou para uma situação de guerra, para a vacância aumentar 2 pontos percentuais, e teve gente que sofreu isso. Tem concorrentes locais nossos que visitamos e estão muito mal. O nosso shopping Parque Belém cresceu 10% no mês passado, ano contra ano, mas o vizinho dele, que fica a 1 km de distância, está com mais de 40 lojas fechadas. O cara que tem um shopping marginal, que não é dominante, está sofrendo…
Os shoppings ruins vão morrer como rentabilidade, vão virar outra coisa. Já estamos vendo um shopping em Uberlândia, construído, completo, que virou um centro de distribuição.
Como está a corrida entre o ecommerce e os shoppings?
Ano passado, o varejo cresceu 4%, a Aliansce Sonae cresceu 9% e o varejo online cresceu 20%. Ambos os negócios ganharam share, mas em velocidade diferentes até pelo tamanho de penetração. Em 2019, os shoppings no Brasil representavam 21% do varejo. E o online representava 6%. Nos EUA, hoje o online representa 16%.
A leitura que o mercado fez, que acho errada, é que vai acontecer no Brasil a mesma coisa que aconteceu nos EUA. Mas são mercados completamente diferentes. Tanto que na China já estão construindo shoppings todo mês. Durante a pandemia ninguém parou obra lá. Na China, 25% das vendas dos shoppings de cidades grandes são alimentação, é muito parecido com a gente. Não é igual os EUA, onde alimentação representa só 5% das vendas.
Essa ideia de que as coisas que estão acontecendo agora serão perpetuadas no tempo… você está vendo isso em outros setores da economia?
Eu acho que já diminuiu. A questão do home office é um exemplo. Cada um tem uma realidade individual. O cara que tem uma família que vive num lugar bucólico, tranquilo, pode pensar: ‘vou querer ficar aqui, morando na Boa Vista’. Mas quantas pessoas podem fazer isso? Ter a infraestrutura suficiente? Essas questões de ‘8 ou 80’ do mercado às vezes as pessoas acertam, outras não. Eu não sei, e nunca quis saber como julgar isso, aprendi isso com o Florian [Bartunek]. O mercado tem sua lógica, e eu tenho a lógica de cada negócio. Eu olho cada negócio. E olhando o meu negócio eu tenho convicção de que temos uma função social muito grande daqui para frente.
O que acho é que se a Magalu negocia hoje a 70x lucro, faria sentido a gente negociar a um múltiplo bem maior do que onde estamos. Hoje, negociamos a 10x lucro porque o mercado coloca na conta que vamos ter perda permanente de valor. O medo de um segundo lockdown acho que está impedindo essa recuperação após o resultado.
Alguns investidores acham que, como o seu portfólio está mais exposto a uma faixa de renda menor, esse público pode sofrer mais com fim do ‘corona voucher’. Como você vê essa questão?
É óbvio que o corona voucher teve um impacto na demanda, mas nos meses de maior impacto os shoppings estavam fechados. Quem pegou a maior parte disso foram os supermercados.
Em outubro, o corona voucher já foi metade. O impacto foi muito grande na classe C, mas nenhum dos nossos shoppings está excessivamente exposto à classe C. Essa faixa de renda infelizmente não tem tanta renda disponível para representar a maior parte da venda de shoppings como os nossos.
O que determina se um shopping é vencedor ou não é a dominância e o tamanho do mercado endereçável. Classe social a gente administra.
A alavancagem de vocês está bem baixa — com uma dívida líquida em torno de 1,3 vez o EBITDA — porque vocês levantaram capital logo antes da pandemia.
No primeiro trimestre depois da fusão entre a Aliansce e a Sonae [terceiro tri do ano passado], a gente já conseguiu entregar a mesma margem da Aliansce, que era a empresa com a maior margem entre as duas. Esse resultado surpreendeu o mercado, e nossas ações refletiram isso. Com isso, chegamos em dezembro de 2019 com a ação em alta e o endividamento um pouco alto, considerando os investimentos que gostaríamos de fazer.
A alavancagem estava perto de 3x e achávamos que tinha muito espaço para expansões e para aquisições pontuais de shoppings. Na época, fomos ao mercado e levantamos R$ 1,2 bilhão e nossa alavancagem caiu muito. Mas esse dinheiro ia ser usado para crescimento. E acreditamos que o crescimento vai acontecer principalmente com a consolidação ou expansão de shoppings dominantes.
No final, acabamos não fechando nenhuma transação de shoppings esse ano porque ninguém está fazendo muito negócio este ano por causa da pandemia. E suspendemos as expansões. Com essa crise, achávamos que íamos acabar consumindo o caixa por questões de inadimplência, custos de condomínio, etc. Mas no final tivemos números até que relativamente bom. E não consumimos praticamente nada de caixa. Não geramos mais, mas não consumimos. E nesse trimestre já voltamos a gerar caixa, então com isso vamos terminar o ano de fato com bastante caixa. Porém, a gente não parou e vamos continuar sim consolidando a indústria. Entendemos que vamos continuar crescendo com a integração do nosso negócio no digital, que vai consumir investimentos, e vamos continuar crescendo por aquisições e expansões.
A pandemia abriu uma janela de consolidação no setor? Como estão os shoppings independentes, que não fazem parte de grandes redes?
A maior empresa do Brasil, que somos nós, tem cerca de 7% do mercado em número de shoppings, e em vendas é mais ou menos isso também. Então, é um mercado pouco consolidado. Em compensação nosso maior parceiro lojista representa só 2,7% da nossa receita. Em alguns mercados desenvolvidos, o maior grupo varejista representa entre 15% a 20% da receita de um shopping. Entendemos que ser o consolidador de shoppings dominante vai ser muito importante.
O que estou vendo agora são grupos internacionais, ou de famílias que já não estavam mais tão relevantes no Brasil, e que sofreram um pouco mais com a pandemia. Não por questões operacionais, mas porque ficaram sem dividendos. Podem ter tomado a decisão de vender. Mas como só olhamos ativos de alta qualidade, a oportunidade está em ter o negócio, e não necessariamente em comprar muito barato. O que essas pessoas estão vendo é que o negócio dos shoppings dominantes continua muito resiliente, muito bom, então ninguém vai vender na bacia das almas. Mas surge oportunidade de fazer transações com pessoas que estão chateadas com a situação de ter fechado os shoppings ou investidores que estão saindo do Brasil, que tem alguns também.
Hoje vocês já estão com algumas conversas em andamento?
Temos conversas tanto com shoppings controlados por famílias e grupos internacionais, tanto para aumentar a participação em shoppings que já temos no portfólio. Por exemplo, em shoppings dominantes em grandes mercados, nosso objetivo é ter entre 50% e 60% do shopping para garantir uma boa governança. Então é natural que a gente aumente participação nos nossos shoppings onde houver oportunidade. Já fizemos isso no passado com três transações legais e continuamos perseguindo, só que normalmente essas transações demoram.
Essa segunda onda te preocupa? Pode haver outro lockdown?
Um lockdown como houve eu não vejo a menor possibilidade. Os números da doença já não são tão fortes, e nenhum mercado voltou a fechar completamente na segunda onda.
O foco do problema hoje são as aglomerações que fogem aos protocolos: são as festas e baladas sem controle nenhum. Sobre essas restrições de horários que estão sendo faladas, o fato é que restringir os horários concentra mais as pessoas ao invés de diluir.
Além disso, já aprendemos muito sobre como enfrentar a pandemia e confiamos nos nossos protocolos de segurança. De 3,8 mil funcionários hoje temos apenas 8 ou 9 pessoas infectadas. No pico, tivemos 80 pessoas infectadas ao mesmo tempo — e com os shoppings fechados.