A pergunta incômoda — que custou aos acionistas da JBS R$ 3,8 bilhões no pregão de ontem — é por que o BNDES, dono de 20% da empresa, resolveu vetar a reorganização societária da companhia, uma operação que os conselheiros do banco haviam aprovado conceitualmente em maio.
Antes de mais nada, convém remover o elefante da sala: tanto o mercado quanto a torcida do Flamengo vêem a JBS como uma ‘campeã nacional’, uma empresa que se agigantou graças à sua proximidade com o Governo Lula, em que pese os irmãos Joesley e Wesley Batista insistirem que essa narrativa não passa de lenda urbana.
Assim sendo, seria natural que o novo BNDES — num governo declaradamente pró-mercado — tivesse um outro tipo de relacionamento com os Batista, e talvez, ao fim e ao cabo, seja disso que se trata.
Mas quando essa mudança de atitude causa um estrago bilionário e não se faz acompanhar por argumentos lógicos, a coisa requer uma análise mais detalhada.
Na reorganização societária proposta, a JBS transferiria todos os seus negócios fora do Brasil e mais a Seara – coletivamente responsáveis por 85% da geração de caixa da empresa — para uma nova companhia chamada JBS Foods International, que teria sede na Irlanda e negociação na Bolsa de Nova York. Para cada ação da JBS, seus acionistas receberiam uma ação da JBS Foods International, que teria portanto o mesmo quadro societário da empresa brasileira. A JBS passaria então a ser controlada pela JBS Foods International.
Nenhum boi da JBS mudaria de pasto, e nenhum fluxo de caixa da empresa mudaria de país, por uma razão simples: a JBS já é uma multinacional que fatura em diversas moedas e 22 países.
No entanto, o endereço irlandês da JBS Foods International permitiria à empresa tomar dinheiro emprestado a taxas civilizadas, e, na Bolsa, os investidores pagariam múltiplos maiores pelo mesmo fluxo de caixa. Enquanto a JBS negocia a 5-6 vezes EBITDA, suas concorrentes nos EUA e Europa negociam a 9-11 vezes.
Estes méritos da reorganização já haviam sido reconhecidos pelos investidores, que levaram a ação de R$9 para R$12 na primeira semana após o anúncio em maio. Para alguns gestores, em sua nova configuração a JBS poderia dobrar de valor. De lá para cá, as ações chegaram a acumular alta de 40% — transformando em nota de rodapé as citações dos irmãos Batista nas investigações da Polícia Federal.
Instado a explicar sua objeção a esta estratégia de criação de valor — e enquanto a ação da JBS implodia, com uma queda que chegou a 20% — o BNDES produziu uma nota vaga.
O banco disse que vetou a operação “porque não a considerou como a alternativa que melhor atende aos interesses da companhia e de seus acionistas”, mas não disse o que colocaria no lugar.
Além disso, afirmou que a reorganização “implicaria na desnacionalização (sic) da empresa” — um argumento que faria mais sentido na boca de um deputado do PSOL — e que exerceu seu direito a veto “zelando por seus deveres fiduciários enquanto parte da coletividade de acionistas da companhia,” como se coubesse ao banco decidir em nome dos acionistas minoritários.
Pode-se gostar ou não dos Batista, mas a nota do BNDES simplesmente não fica em pé.
Ora, se o banco era contra o negócio, por que não se manifestou antes? Por que, exatamente, o banco considera que a reorganização não seria “no interesse da companhia”? E, sendo contra, por que se arvorou em protetor dos minoritários e decidiu por eles, em vez de deixar que a assembleia de acionistas decidisse?
O argumento da desnacionalização, com todo seu cheiro de naftalina, é particularmente surreal à luz da história.
Em 2009, o BNDES emprestou R$ 3,5 bilhões à JBS para a compra da Pilgrim’s Pride, uma empresa americana de aves. Uma das cláusulas do contrato exigia que a JBS fizesse o IPO da JBS USA — a holding que deteria o controle da Pilgrim’s — até um determinado prazo. As debêntures eram conversíveis em ações, e o banco ficaria com 20% a 25% da empresa americana… Como a crise global, foi impossível cumprir o prazo do IPO, e a JBS teve que pagar ao banco uma multa de R$ 520 milhões.
Ou seja: lá atrás a empresa pagou por não conseguir se ‘internacionalizar’, e agora paga (caro) por querer.
Ontem, várias teses prosperaram no buyside, na medida em que as pessoas tentavam achar uma explicação racional para o veto.
A especulação majoritária, é claro, dizia respeito à Lava Jato. “E se o banco tiver descoberto algo na empresa? E se ele temer que, uma vez que a nova empresa seja constituída, ela estaria sujeita a ações coletivas de acionistas — comuns nos EUA e Europa — pedindo reparação de danos?”
A tese se encaixa perfeitamente na narrativa de desconstrução da era Lula, mas não casa com os fatos. 1) Por ser controladora da Pilgrim’s Pride nos EUA, por conduzir negócios nos EUA e por ter contas bancárias lá, a JBS já está sujeita ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a temida lei americana que se aplicará se a Lava Jato de fato implicar a empresa. 2) Por ter investidores americanos na sua base de credores e por ter fundos americanos como sócios na Pilgrim’s, a JBS já está sujeita aos ‘class action lawsuits’ que já atordoaram a Petrobras e a Eletrobras.
O acordo de acionistas que lhe dá direito a veto vigora até 2019. Se o banco decidir vender sua posição antes, o mais provável é que saia a mercado — e agora, a um valuation menor.
Até que o banco se explique melhor, o veto de ontem tem toda a cara de um tiro no próprio pé, (in)justificado por uma retórica tosca, e como se o BNDES ainda estivesse engajado na triste rotina de conduzir e moldar o destino dos campeões nacionais.