Tiago Ring, o analista que produziu uma apresentação demolidora sobre abusos no FIES, deixou a Kapitalo Investimentos, a gestora onde trabalhava há quase seis anos.
A saída se deu no fim de novembro, dias depois que a Kroton, a empresa mais criticada no relatório, fez uma visita à Kapitalo para refutar os argumentos levantados por Ring. O trabalho do analista havia levado a gestora a montar um ‘short’ na Kroton — um investimento que lucra quando a ação da empresa cai.
Três executivos da Kroton, incluindo o CEO, Rodrigo Galindo, pediram à Kapitalo uma reunião, para a qual levaram uma versão impressa da apresentação marcada com grifos e anotações. Segundo uma pessoa próxima à Kapitalo, o material incluía trocas de email de Ring com outros gestores, nos quais ele discutia a tese de investimento.
O analista estava de férias e não participou da reunião.
A visita da Kroton causou um impasse: analista e gestora discordaram sobre a forma de responder à visita da Kroton e à publicidade que a tese ‘short’ ganhou. Ring defendia que a Kapitalo desse uma resposta seca e encerrasse a discussão, segundo o analista tem dito a gestores em entrevistas para uma nova posição. Já a Kapitalo temia a atenção que o caso atraiu.
Além de não ser uma casa dedicada à gestão de ações – apenas um quarto do seu patrimônio de R$ 2 bilhões está na Bolsa – a Kapitalo nunca esteve sob os holofotes do mercado. O sucesso e a repercussão da tese de Ring sobre o FIES momentaneamente mudaram isso.
Ring estudava o FIES há anos. Ao longo do tempo, o analista compilou os argumentos do ‘short’ numa apresentação PowerPoint com 87 lâminas, para uso interno. Ocasionalmente, quando outros gestores e analistas de bancos visitavam a Kapitalo, Ring mostrava a apresentação e discutia seu conteúdo.
Robusta e detalhada, a apresentação descrevia abusos no FIES, dizia que as maiores empresas do setor inflavam os preços das mensalidades, e terminava afirmando: “É inaceitável esse descaso com o dinheiro público. Com um mínimo de gestão seria possível formar mais alunos, com menos dinheiro e mais qualidade.”
“Não é intenção acusar nenhuma empresa de estar sendo imoral, muito menos de desrespeito às regras do FIES. Tanto as pessoas quanto as companhias reagem a incentivos e, se estão ocorrendo o que chamamos de ‘abusos’, é porque o sistema permitiu.”
Em outro capítulo, Ring explorava os descontos dados a alunos que não são financiados pelo programa e que são negados aos alunos FIES, gerando um sobrepreço pago pelo programa.
A lei estabelece que todos os “descontos regulares e de caráter coletivo oferecidos pela instituições” também devem se aplicar ao aluno do FIES, mas permite “descontos segmentados para grupos específicos”.
Na apresentação, Ring explicava que “fica muito fácil para as faculdades escaparem dessa obrigação fazendo inúmeras promoções específicas, bolsas e convênios com empresas. Como esses descontos não se aplicam a todos os alunos, não são considerados descontos coletivos a que o aluno FIES também possui direito.”
Exemplos de promoções específicas incluem: 20% desconto para torcedores do São Paulo, 10% desconto para torcedores do Internacional e 20% desconto para torcedores do Ceará. Há ainda outros descontos que o aluno não-FIES recebe sem nem ter que pedir: ‘Bolsa Captação’, ‘Bolsa Incentivo’ e ‘desconto Pontualidade’.
O analista então perguntava: “Por que é que o MEC não escreve explicitamente que o aluno FIES deve ser o aluno de menor mensalidade da classe?”
Com o tempo, a apresentação começou a circular no mercado, mas a Kroton só decidiu visitar a Kapitalo depois de outro evento.
No Kroton Day, realizado em 24 de outubro, alguém publicou um site e circulou um email argumentando as mesmas teses que Ring defendia. O analista afirma que estas duas iniciativas não partiram dele, mas, por via das dúvidas, a Kroton — que possui um dos times de RI mais agressivos do mercado — foi questionar a gestora. Os fatos sugerem que, em vez de defender o trabalho de Ring depois da repercussão, a Kapitalo capitulou.
Ao Brazil Journal, a Kapitalo elogiou o trabalho de Ring, disse que sua saída foi motivada por uma dinâmica interna e não teve relação com a visita da Kroton. Apesar do desconforto com a publicidade do caso, a gestora continua apostando na tese desenhada pelo analista. Sua carta de gestão de dezembro diz: “Na Bolsa brasileira, as principais contribuições positivas para o resultado foram posições vendidas em educação e consumo e posições compradas em elétricas”.
A partida abrupta de um profissional cujo trabalho foi universalmente elogiado por seus pares testa os limites práticos da liberdade de um analista no mercado financeiro: uma atividade que depende, por definição, de espírito crítico e independente.
No Brasil, onde toda crítica é tida como pessoal, mesmo a crítica baseada em fundamentos costuma provocar reações desproporcionais — e algumas empresas guardam mágoas na geladeira.
Há alguns anos, a Squadra Investimentos publicou uma carta a investidores explicando os motivos de seu ‘short’ em Anhanguera Educacional, uma empresa de educação mais tarde adquirida pela Kroton. A carta da Squadra azedou até hoje a relação da gestora com o Pátria, então o acionista controlador da Anhanguera. De lá para cá, a Squadra deixou de expor suas teses com a mesma assertividade de antes, e o mercado de ideias brasileiro ficou menos dinâmico e mais pobre.
Nos EUA, alguns gestores frequentemente defendem suas teses ‘short’ — que apontam vulnerabilidades no modelo de negócio ou na gestão — por meio de cartas públicas: lá, as empresas aguentam o barulho, e os investidores aguentam o tranco.
Em busca de uma nova casa, Ring está conversando com outras gestoras.