Romancista, jornalista, ensaísta, polemista, político, ator (por um breve período, nos palcos de Barcelona): o peruano Mario Vargas Llosa foi de tudo ao longo dos 89 anos de uma vida turbulenta que se encerrou tranquilamente ontem, em Lima.
Ele será lembrado em primeiro lugar por sua vasta obra literária, na qual se incluem portentos do romance em língua espanhola como Conversa no Catedral e A Guerra do Fim do Mundo. Nobel de Literatura de 2010, ele era o último representante do chamado boom literário da América Latina, que tomou o mundo letrado internacional nos anos 1960 e revelou escritores como o colombiano Gabriel García Márquez, o argentino Julio Cortázar e o mexicano Juan Rulfo.
Vargas Llosa foi também um paladino do liberalismo no sentido amplo da palavra, que inclui não apenas liberdade de mercado mas também democracia, direitos individuais e tolerância com a diversidade de ideias, crenças e comportamentos.
Por seu alinhamento com a direita democrática, ainda é um escritor mal aceito entre os ditos progressistas. Os mais moderados até elogiam sua excepcional obra literária, com a ressalva questionável de que se deve separar a obra do autor. Uma bobagem. Com suas falhas e contradições naturais, Vargas Llosa foi um homem só.
Talvez se possa compreendê-lo como um ficcionista que levantou uma questão difícil sobre seu país – e sobre a América Latina, embora ele rejeitasse a ideia de uma “identidade latino-americana” – e então tentou respondê-la em sua atuação como homem público.
A pergunta está no primeiro parágrafo de Conversa no Catedral, terceiro romance de Llosa, publicado em 1969. É formulada em termos chulos e muito expressivos pelo protagonista do livro, o jornalista Santiago Zavala: “Em que momento o Peru se fodeu?”
Em sua longa carreira, Vargas Llosa diria que o Peru e tantos outros países latino-americanos quebraram (para usar um termo mais suave) porque optaram pelo atraso. Porque abraçaram governos populistas, autoritários e estatizantes. E a solução era a liberdade política e econômica, o incentivo à iniciativa privada, o desmonte das estruturas pesadas e corruptas do Estado.
Foi esse programa que Vargas Llosa defendeu em sua única incursão pela política: a candidatura à presidência do Peru em 1990. Perdeu para Alberto Fujimori, que se vendia como liberal mas, no poder, acabou se revelando um ditador.
O escritor não voltaria a disputar cargos eletivos. A experiência rendeu um livro, Peixe na Água, que intercala o relato da campanha de 1990 com memórias (bem mais interessantes, aliás) de sua infância e juventude.
Jorge Mario Pedro Vargas Llosa nasceu em Arequipa, interior do Peru, em 1936, e passou a maior parte da infância em Cochabamba, na Bolívia, onde seu avô materno administrava uma fazenda.
Por essa época, o menino Losa acreditava que era órfão de pai. Era o que sua mãe, abandonada pelo marido, lhe contava. O pai reapareceu quando ele tinha dez anos, e a relação entre os dois foi sempre tensa.
Aos 14 anos, já de volta ao Peru, Llosa foi mandado para um internato militar, onde experimentou a disciplina castrense – e leu muito, descobrindo sua vocação para a literatura.
Essa experiência seria a base do primeiro de seus vinte romances, A Cidade e os Cachorros, de 1963 (quatro anos antes, ele havia publicado Os Chefes, coletânea de relatos breves). Já começou sob o signo da polêmica: o livro foi atacado por militares que não gostaram de seu retrato sem enfeites da vida na escola militar. Uma pilha de mil exemplares da obra foi queimada no pátio do internato.
Já nesses primeiros anos, Llosa exibia uma prosa viva e vigorosa, repleta de “peruanismos” (expressões e gírias locais). Sua construção de diálogos intercalados tinha algo de experimental. Era uma literatura realista, fortemente imbricada na realidade política peruana (Manuel Odría, ditador do Peru nos anos 1950, aparece como personagem secundário em Conversa no Catedral).
Nada disso tem a ver com o “realismo mágico” a que o boom latino-americano ficou associado, sobretudo por causa de Cem Anos de Solidão, de García Márquez. Llosa, no entanto, admirava muito essa obra, sobre a qual escreveu uma extensa tese de doutorado, publicada com o título História de um Deicídio.
A amizade entre os dois escritores foi estreita nos anos 1960, quando ambos admiravam a revolução cubana. Em 1962, Llosa visitou Cuba, em plena Crise dos Mísseis, e voltou falando maravilhas da ilha de Fidel Castro. Anos depois, porém, ele escreveu uma carta de protesto contra a prisão do escritor cubano Herberto Padilla pela ditadura comunista.
O rompimento definitivo entre Llosa e García Márquez não se deu por razões ideológicas. Aconteceu em 1976, naquele que é o mais discutido barraco da literatura latino-americana: em um cinema na Cidade do México, o autor peruano acertou um soco no colombiano.
Nenhum dos dois jamais esclareceu o motivo da briga. Mas é certo que era uma questão pessoal, provavelmente envolvendo uma mulher.
Na vida íntima, Llosa causou escândalo em sua própria família aos 19 anos, quando se casou com uma mulher mais velha que ele considerava sua tia (na verdade, era cunhada de um tio do escritor). O romance Tia Julia e o Escrivinhador é baseado nesse caso. O escritor depois trocaria a tia por uma prima, Patricia Llosa, com quem teve três filhos. Divorciaram-se em 2015, depois de cinquenta anos de matrimônio, quando Llosa se envolveu com a socialite filipina-espanhola Isabel Preysler, ex-mulher do cantor Julio Iglesias. Os dois romperam em 2022.
Muito ligado ao Peru, matéria da maior parte de sua obra, Llosa ainda assim era por natureza um homem cosmopolita. Tinha cidadania espanhola. A obra que disputa com Conversa no Catedral a distinção de obra-prima do autor tem cenário brasileiro: A Guerra do Fim do Mundo (1981), romance de proporção e violência épicas, é sobre a Guerra de Canudos, no sertão da Bahia.
Em outubro de 2010, dias depois de seu nome ser anunciado como o Nobel de Literatura daquele ano, Mario Vargas Llosa esteve no Brasil. Eu então trabalhava em Veja e participei de um almoço com o autor de Travessuras da Menina Má no restaurante que existia no terraço da editora Abril.
Entrevistamos Llosa – Diogo Schelp, Ricardo Setti e eu – na mesa do almoço. O tema foi mais político do que literário. O escritor criticou o nacionalismo (“a cultura dos incultos”) e a predominância da esquerda nos meios culturais. Mas se mostrou otimista com os rumos de uma América Latina em sua maior parte democrática. Observou que até chefes de Estado de esquerda (o uruguaio José Mujica, o peruano Alan García e o brasileiro Lula) seguiam a racionalidade econômica liberal.
Não sei se esse otimismo sobreviveria ainda hoje. A questão que Santiago Zavala deixou para o Peru e a América Latina segue em aberto.
A obra gigantesca que o criador de Santiago nos deixou foi encerrada nos termos do escritor. Em 2023, Mario Vargas Llosa anunciou que Dedico a Você Meu Silêncio, publicado naquele ano, seria seu último romance. Ponto final.